Devemos parar para pensar no clima que se tem instalado nos últimos meses no que diz respeito à perceção sobre a imigração, alimentada pelo discurso público e com claros efeitos políticos.

Recordemos: aqui ao lado, em Torre Pacheco, na região de Múrcia, um incidente de agressão a um pensionista por parte de três pessoas com origem no norte de áfrica foi pretexto para uma onda de confrontos, espécie de ‘caça ao imigrante’ promovida pela extrema-direita e alimentada por desinformação.

Em Portugal assistimos ao rocambolesco episódio da leitura de uma lista de nomes – cuja veracidade não terá sido verificada – alegadamente de crianças imigrantes inscritas  numa escola portuguesa, primeiro numa rede social, depois no próprio Parlamento. A instrumentalização foi óbvia: a ideia era agitar o espantalho de uma “mudança cultural e civilizacional”, num gesto que ecoa teorias da conspiração como a “grande substituição”. O caso, repugnante, está agora a ser investigado pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, por violação do RGPD.

Antes disso, no início de Junho, voluntárias que distribuíam comida a sem-abrigo no Porto foram agredidas por neonazis que as acusaram de ser responsáveis pelo aumento da imigração.

Neste pano de fundo, assistiu-se à aprovação parlamentar de várias alterações à lei da nacionalidade e à lei dos estrangeiros, criando um quadro legal que se tornará, caso as alterações não sejam vetadas – o Presidente da República anunciou entretanto o pedido de fiscalização preventiva da lei dos estrangeiros ao Tribunal Constitucional –, um dos mais restritivos da Europa. O próprio governo parece apostado em empolar os números da imigração de forma alarmista, numa clara cedência à agenda da extrema-direita. Pode-se especular sobre as motivações desta cedência. A interpretação mais caridosa dirá que o motivo é mais populista que ideológico. Mas o jogo que se está a jogar é muito perigoso – sabemos como começa, mas não sabemos como acaba.

A facilidade da hostilidade

Podemos perguntar-nos quais as raízes profundas deste clima hostil. Os factos estão todos em cima da mesa: não há correlação entre aumento da imigração e da criminalidade, Portugal continua a ser dos países mais seguros do mundo, o saldo das contribuições dos imigrantes para a Segurança Social continua a ser muitíssimo positivo e é mais do que evidente que a economia portuguesa precisa de mão-de-obra imigrante.

Não é, portanto, possível dizer-se de boa-fé que os estrangeiros representem uma ameaça no nosso país. E o fantasma dessa ameaça mais não é que um apelo aos instintos mais primitivos de rejeição de quem aparece, de fora, como sendo diferente, bem como uma manipulação de receios e descontentamentos (por mais legítimos que sejam).

Aquilo que aqui se encontra é a tentativa de imposição de identidades monolíticas, como se houvesse alguma ‘pureza’ de uma identidade portuguesa a opor de forma tribal à dos ‘outros’. Como é evidente, nada disto é novo no nosso imaginário coletivo. A rejeição da alteridade e o salto daí para a projeção da ameaça vinda de fora tem inúmeros exemplos na história da cultura.

Alguém como Richard Kearney (veja-se Strangers, Gods and Monsters) argumenta que esse instinto primitivo de rejeição do que nos aparece como não sendo familiar habita uma espécie de inconsciente cultural e ajuda a explicar todas as tentativas de imposição de uma identidade face a uma alteridade. Nesta linha de argumento, o repúdio do que nos aparece como sendo ‘estranho’ aparece como um receio do que parece escapar ao nosso controlo; assim, ou tentamos compreender e aceitar a nossa experiência dessa estranheza que nos escapa, ou a projetamos exclusivamente nos outros – o que nos leva a identificá-los como ameaça e afastá-los.

Sejam quais for os méritos desta tentativa de compreensão do instinto de rejeição da diferença, nada o justifica. Face à alteridade, a hostilidade é fácil. Mas é preciso ir para lá dela. Kearney explora as fontes do valor da hospitalidade em algumas das fontes culturais que mais nos influenciaram – a cultura grega, as religiões abraâmicas – mostrando como, por mais difícil e improvável que seja, ela não só não é impossível como faz igualmente parte das tradições culturais e costumes nos quais nos reconhecemos.

O círculo vicioso

 Em certo sentido, o clima de hostilidade também revela intolerância. E, mais uma vez, o que está em causa é o modelo de sociedade a que aspiramos. Quereremos uma política de portas cada vez mais cerradas para quem cá vem em busca de uma vida melhor? Na qual o reagrupamento familiar, tão importante para a estabilidade e a integração, se torne cada vez mais difícil? Uma sociedade menos diversa e mais intolerante?

De forma nada surpreendente, as alterações à lei da nacionalidade já causaram expressões de incómodo por parte dos governos do Brasil e de Angola, estando em cima da mesa a possibilidade de aplicação de medidas recíprocas que, claro, também tornariam a vida dos emigrantes portugueses bem mais difícil. Duplo tiro no pé, portanto.

Felizmente, não chegámos ao ponto a que se chegou em Torre Pacheco. Mas, como defendeu Ana Gomes, se calhar estão a criar-se as condições para que isso aconteça. Intolerância e hostilidade alimentam-se mutuamente num círculo vicioso, e o clima que delas resulta só interessa à extrema-direita, para quem um eventual recrudescer da conflitualidade social no sentido de uma maior xenofobia e alegado “choque de culturas” só viria reforçar a perceção de ameaça – a acontecer, e dado o papel destas forças políticas no reforço deste clima de hostilidade, tratar-se-ia, na verdade, de uma profecia autorrealizada.

De resto, quando se normaliza a intolerância e se começam a retirar direitos, sublinhe-se de novo: não se sabe onde vamos parar. O círculo vicioso pode tornar-se uma espiral. Se hoje os imigrantes são o alvo, quem será amanhã?

Talvez ainda consigamos ir a tempo de evitar esta escalada. Não será fácil, dada a deterioração do debate público e a facilidade com que se cede a esta agenda. Mas esta é uma responsabilidade que nos toca a todos enquanto cidadãos: não ceder à intolerância, não alimentar a hostilidade. Se assim for, pode ser que o ar do tempo se volte a tornar mais respirável.