O chamado “caso das gémeas” tem estado no centro de uma pequena tempestade política e mediática, mas os factos que vieram a público apontam para uma situação mais complexa do que inicialmente se pensava, no sentido de não ser tão linear como alguns tentam fazer crer.

Em primeiro lugar, ficou demonstrado que as gémeas tinham direito à cidadania portuguesa, tendo o processo da sua obtenção demorado cinco meses, um prazo dentro da média. As meninas são filhas, netas e bisnetas de portugueses. Têm tanto direito a ser tratadas no SNS como uma criança que tenha nascido em Viseu ou Faro, por muito que isso desagrade a quem tenta ganhar votos fazendo distinções entre os portugueses ditos “de bem” e os outros, tratando de forma cruel uma mãe fragilizada que fez tudo para salvar as suas filhas.

Em segundo, os dados oficiais não permitem sustentar que outros pacientes tenham ficado para trás ou tenham sido preteridos pelo facto de as meninas terem recebido o Zolgensma. Pelo contrário. Desde 2019, foram tratadas 33 crianças com este medicamento em Portugal. Não há lista de espera para o Zolgensma e o Infarmed tem aprovado praticamente todos os pedidos que os médicos do SNS lhe fazem chegar para poderem ministrar o medicamento, muitas vezes logo no dia seguinte, tal como sucedeu neste caso.

Resta o tema do favorecimento e do abuso de poder que poderão ter existido por parte de António Lacerda Sales e que se encontram em investigação, pelo facto de o então secretário de Estado ter marcado a consulta inicial das crianças no Hospital de Santa Maria.

Segundo a auditoria realizada pela IGAS, dez crianças receberam o medicamento naquela unidade hospitalar, mas as gémeas luso-brasileiras foram as únicas a ser referenciadas por Lacerda Sales. O titular de um cargo público não pode tratar os cidadãos de forma desigual e, de acordo com uma portaria em vigor, as consultas em questão não podem ser marcadas por um governante por via telefónica. Estes factos estarão na origem da constituição de Lacerda Sales como arguido por suspeitas de abuso de poder e burla qualificada.

Com base na informação que foi tornada pública – e com a devida ressalva, uma vez que o caso ainda está a ser investigado –, tudo indica que poderá ter havido de facto “cunha” ou “pistolão”. Porém, a situação não será tão simples ou a preto e branco, como alguns tentam fazer crer numa Comissão Parlamentar de Inquérito que mais parece dever-se a um ajuste de contas do Chega com Marcelo.

E não será simples porque ainda se pode chegar à conclusão de que, apesar da eventual violação de algumas regras formais, o comportamento de Lacerda Sales no plano ético poderá ter sido o mais correto ou, se preferirmos, o menos mau.

Isto é, perante o dilema ético que lhe foi colocado, entre ajudar aquela família ou deixar o processo seguir o seu curso, o secretário de Estado terá optado pelo mal menor, tentado garantir que as crianças recebessem assistência o mais depressa possível. Sem prejudicar outros pacientes e, ao que tudo indica, deixando a decisão sobre a utilização do medicamento nas mãos dos médicos e do Infarmed.

Aqui chegados, é bom lembrar que “ética” significa não lesar. Ainda não é claro se a intervenção de Lacerda Sales fez de facto alguma diferença; e é certo que em circunstâncias normais não lhe cabia a marcar consultas. Porém, bem ou mal, a situação infeliz destas crianças chegou ao seu conhecimento. Devia ignorar o caso, por alegadamente se tratar de uma ‘cunha’ pedida pelo filho do Presidente da República, sabendo que tal poderia representar uma sentença de morte para as duas meninas?

Para a maioria de nós, não será fácil responder a esta questão. E, provavelmente, qualquer juiz que seja capaz de ver para além das parangonas ou das frases dos oráculos das televisões poderá concluir que se tratou de uma situação  justificada por um bem maior, a preservação da vida humana. A seu tempo veremos.

Mas o que verdadeiramente devíamos estar a discutir é por que razão uma mãe e um pai desesperados sentem necessidade de recorrer a um “pistolão” para que o Serviço Nacional de Saúde salve as suas filhas.