O discurso de Angela Merkel no domingo – “o destino da Europa está nas mãos dos europeus” – marca um momento histórico de viragem na conceção que a Europa e a Alemanha têm de si mesmas, e da sua posição no mundo e nas relações transatlânticas. Merkel incluiu o Reino Unido no lado dos americanos, ou seja, do lado da aliança que esfriou ou que já não é verdadeiro garante da segurança europeia. Mas, pelo que percebo, os americanos que não votaram em Trump e os britânicos em geral ficaram tão chocados com as posições Trump em Bruxelas, na NATO, e em Toarmina, na cimeira do G7, como os europeus. Os jornais americanos de ontem dizem claramente que Trump e Putin parecem estar coordenados e que o objetivo da União Soviética em separar a Alemanha – e a Europa – dos EUA está a ser conseguido por Trump. Putin está doido de alegria, escreve um jornal.

O mal-estar na Alemanha em relação aos EUA vem desde o tempo em que Gerhard Schroder recusou participar na guerra do Iraque. E, ao contrário da impressão geral, a relação esfriou imenso ao longo dos mandatos de Barack Obama. Mas houve coisas que Trump disse agora na Bélgica e Itália que ofenderam profundamente os alemães, de tal modo que Martin Schulz, o líder do SPD na oposição, veio defender a chanceler, e não terá sido apenas para procurar votos.

Não sei se terá sido a tirada de Trump que os alemães são “maus, muito maus”, que os jornais alemães puxaram para grande título de primeira página, porque vendem muitos carros que os consumidores americanos querem comprar (fabricados na quase totalidade em fábricas que instalaram nos EUA), ou se terá sido, como também se diz, um inaceitável comportamento “autocrático” de Trump em Taormina. A verdade é que, numa entrevista, Emmanuel Macron colocou Trump, Putin e Erdogan ao mesmo nível. Entretanto, nos media americanos, a questão da segurança da Europa aparece intimamente ligada à investigação do Congresso e do FBI às relações secretas entre a família Trump e seus apaniguados com os russos.

Em junho de 2016 escrevi no Económico que era mau para Portugal e para a Europa se Trump viesse a ser eleito, como tudo indicava, mas poucos acreditavam. Em outubro desse ano, após a vitória de Trump, escrevi: “Agora estamos todos lixados” – o título da crónica era “EUA em convulsão, Rússia agressiva, cerco à Europa, guerra”. E em fevereiro deste ano escrevi: “A divisão e enfraquecimento da Europa é também objetivo declarado de Trump. Mantenhamos, pois, a esperança de que a metade “America the Beautiful” se reafirmará assim que o Estado de direito torne possível pôr termo à loucura antidemocrática e anti-Ocidente de Trump e que a Europa se mantenha firme, unida e o mais bem armada possível.”

A questão da defesa da Europa é primordial. Há dois dias o jornal sueco de grande tiragem Aftonbladet (A Folha da Tarde), tradicionalmente ligado aos sociais democratas, publicou uma grande reportagem sobre o poder bélico conjunto dos países nórdicos: todos somados têm o mesmo número de aviões que o Reino Unido; mais carros de combate que a França; e três vezes mais artilharia que qualquer outro país da União Europeia. O jornal concluía que vários especialistas são de opinião que uma aliança nórdica não só é viável do ponto de vista do poder bélico como é necessária. Porquê? Para suster uma invasão da Rússia. Já se contam espingardas.

Os europeus ainda ofereceram o benefício da dúvida a Trump e, durante estes encontros, terão dito repetidamente ao presidente para os EUA assumirem a liderança das democracias liberais. Parece que Trump nunca tinha pensado nisso, porque o mais provável é que não esteja interessado em ser líder de gente que o detesta. Por isso, como escreveu Vasco Pulido Valente, está a estabelecer uma relação de grande potência com a Rússia, e agora já nem sequer precisa de utilizar o canal secreto que o genro Kushner estava a preparar. Aliás, nem parece que Trump considere a ideia necessária para expandir a sua propensão ditatorial aos aliados. Um jornal relatou que Sean Spicer, o porta-voz da Casa Branca, disse a um colega de governo olhando para o púlpito onde Trump iria falar em Taormina: “Pertence-nos. É nosso.” Ele referia-se ao mundo – o púlpito como símbolo do poder para vociferar ordens ao mundo.

Ainda antes destes dias fatais, alguém escreveu que há na Europa qualquer coisa como uma sensação de orfandade ou de isolamento. Na minha opinião, isso revela um complexo de menoridade. Como disse Merkel – que de novo revelou ser a grande estadista europeia, e não está certamente apenas a fazer campanha junto de um eleitorado há muito desconfiado dos americanos –, o destino está nas mãos dos europeus. Somos 600 milhões, a maior zona de comércio livre do mundo, com uma moeda forte, as economias mais avançadas do planeta. A liderança das democracias liberais, constituídas sobre o Estado de direito, social e internacionalista deve ser assumida pela Europa – Reino Unido incluído. É preciso garantir a liderança europeia, Merkel e Macron (infelizmente Theresa May é um desastre), e construir um pacto europeu credível e eficaz de segurança militar, just in case a NATO não cumpra o Artigo 5º do Tratado. Este deve ser o ponto de partida da política europeia para renovar a UE e a união dos europeus.