A primavera de 2020 não foi recebida de braços abertos como é habitual. Não ouvimos os risos de crianças na rua, não damos passeios à beira-mar, nem vemos o sol descontraidamente deitar-se no Atlântico. Os sorrisos são nervosos e os olhares preocupados. Estamos perante um desafio que ameaça, duradouramente, abalar os alicerces da sociedade como a conhecemos. Um desafio que nos trancou. Nos afastou. E nos tirou, até, a dignidade no último adeus.
A Europa procura caminhos que permitam restaurar alguma normalidade. O vírus não é hoje a única ameaça, porventura nem será já a mais séria. As medidas adotadas no estado de emergência em que vivemos tiveram, e continuarão a ter, um sério impacto na vida de todos nós, sem exceção.
A sociedade exige medidas robustas, reclama a participação das forças armadas na imposição do isolamento social, admite a possibilidade da introdução de drones para o policiamento das ruas e ensaia o seu controlo generalizado mediante sistemas de geolocalização. Estará o paradigma social europeu irremediavelmente perdido?
Nas últimas semanas têm ecoado na Europa mensagens insistentes de que uma percentagem muito mais vasta da população poderá já ter contraído o vírus e que a almejada imunidade comunitária poderá ser uma realidade menos longínqua.
Conquanto não confirmado oficialmente pelo governo alemão, o Instituto Robert Koch declarou já estar a organizar um estudo em larga escala para identificar quantos alemães estarão já imunizados. O estudo visa criar um instrumento de combate ao lockdown que temos experienciado por toda a Europa: o passaporte imunológico. Diversos outros países europeus, como a Espanha, apressaram-se a lançar as bases para a adoção de medidas de idêntica índole.
O passaporte imunológico constituirá um certificado que visa atestar que um determinado indivíduo já não se encontra em risco de contrair o vírus. A determinação da qualidade de “imune” dependerá da verificação de anticorpos no sangue. Contudo, os especialistas debatem ainda a fiabilidade de tais testes ou os mais adequados critérios de análise, pois a profundidade e dimensão da informação de que hoje dispomos não será, porventura, suficiente.
Assomam, ainda, dos projetos de implementação do passaporte imunológico dúvidas que a todos deverão inquietar. Estaremos a assistir à criação de um mecanismo de segmentação social, criando novas categorias de cidadãos, de primeira e de segunda, com base imunológica? Serão as finalidades legítimas e os meios de tratamento da informação proporcionais e adequados? Qual será a efetiva intenção deste passaporte? Poderá ser este passaporte essencial no acesso ao emprego?
A resposta a qualquer das questões colocadas não será óbvia. Admitimos, ainda assim, a necessidade de ponderar o recurso a mecanismos não convencionais, em momentos excecionais. O Estado, na promoção da retoma da atividade económica, não poderá contudo obviar a igualdade real entre os cidadãos. Tão-pouco poderá ser esquecida a dignidade de todos aqueles que, por desígnio da fortuna, possam ver-se cerceados do direito de exercer livremente uma atividade profissional.
Urge, independentemente da bondade das medidas a adotar, recordar que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. E, mesmo num contexto de estado de emergência, a necessidade de compressão dos direitos constitucionais que norteiam a nossa vida em sociedade deverá ser, sempre, acompanhada de medidas destinadas a prover pela igualdade social e a evitar qualquer forma de discriminação.
Não será igualmente despiciendo considerar a problemática resultante do recurso a meios particularmente intrusivos à reserva da intimidade da vida privada.
Sendo certo que o passaporte imunológico se apresenta como um instrumento válido e preconiza um meio de auxílio à resolução da crise em que vivemos, deverá igualmente ser ponderada a legitimidade e licitude do tratamento massivo dos dados dos cidadãos para a mera obtenção de direitos que, em momento algum, julgámos nos poderem ser retirados.
A adoção de medidas seguras, previamente pensadas e estudadas, por parte do Estado, é crucial. Cada passo dado na limitação destes direitos constitui um perigo, tanto pela sua (eventual) irreversibilidade, como pelo perigo real de erosão dos princípios que norteiam a sociedade democrática ocidental.
A celeridade é, mais do que nunca, o desígnio de todos quantos procuram identificar caminhos para que a sociedade possa, um dia, voltar a sê-lo. Resta a questão: será este um caminho adequado a derrubar barreiras, ou apenas mais um beco que nos levará a lado algum?