Há temas que a Europa insiste em tratar com pudor, como se o silêncio fosse uma forma de virtude. O extremismo islâmico é um deles. Não por medo do terrorismo – que a Europa aprendeu, tragicamente, a enfrentar – mas por medo de parecer intolerante. Contudo, há momentos em que o silêncio é uma forma de rendição. O extremismo islâmico não é uma invenção da direita populista nem uma fantasia securitária. É uma realidade política e ideológica que põe em causa o coração da civilização europeia: a liberdade individual, a igualdade entre homens e mulheres e a soberania da lei democrática sobre qualquer outra lei.
O radicalismo islâmico não nasceu na Europa, mas encontrou nela terreno fértil. As suas origens estão nas fraturas deixadas pelo século XX: o colapso do colonialismo, o falhanço dos regimes árabes nacionalistas, a ascensão das teocracias financiadas pelo petróleo e a humilhação política de povos que nunca encontraram um equilíbrio entre modernidade e tradição. O islamismo político prometeu o regresso a uma pureza anterior ao contacto com o Ocidente. Foi nesse regresso imaginário que nasceu a teologia da violência: a ideia de que o terror é um instrumento legítimo para reconstruir uma ordem divina.
Quando as guerras do Afeganistão e do Iraque fragmentaram o Médio Oriente, milhões de refugiados e migrantes procuraram o continente europeu. Vieram em busca de paz, mas o vazio ideológico da Europa – uma Europa envelhecida, próspera e sem fé em si mesma – abriu espaço à infiltração do radicalismo. A segunda geração, nascida já em solo europeu, cresceu entre duas rejeições: a da sociedade que os via como estrangeiros e a dos pregadores que lhes diziam que a Europa era o inimigo da sua alma.
Os atentados de Madrid, Londres, Paris, Bruxelas, Nice, Berlim e Copenhaga não foram ataques contra edifícios, mas contra um modo de vida. Foram ataques contra a ideia de que a pessoa é livre, de que a mulher é igual ao homem, de que o Estado e a religião são esferas distintas. É o mesmo ódio que o Irão manifesta contra Israel. Teerão não rejeita Israel por causa de um território, mas porque Israel representa a heresia maior aos olhos do islamismo radical: um Estado democrático, secular e livre no coração do mundo muçulmano. Israel representa no coração do Médio Oriente a forma de vida ocidental e o mundo e a ordem liberal. A existência de Israel é, para esses regimes, uma ofensa moral. Representa a vitória da razão sobre o dogma, da liberdade sobre a submissão.
O erro europeu foi confundir tolerância com neutralidade moral. A Europa quis acolher e integrar, mas esqueceu que a integração exige reciprocidade. Não é possível partilhar uma casa comum se cada um viver sob as suas próprias leis. A lei da sharia, aplicada em bairros inteiros de cidades como Londres, Paris ou Berlim, não é apenas uma questão religiosa: é a tentativa de criar uma jurisdição paralela ao Estado de direito. Quando tribunais informais decidem sobre casamentos, divórcios ou heranças em função de códigos religiosos, o princípio da igualdade é suspenso. E com ele, a própria ideia de cidadania e liberdade.
O extremismo islâmico, na sua versão mais radical, não é apenas terrorista; é teocrático. Quer substituir a lei dos homens pela lei divina. É por isso que a defesa da liberdade europeia não é apenas uma questão de segurança, mas de soberania. Uma sociedade que aceita pequenas exceções em nome do respeito cultural – que aceita, por exemplo, a segregação sexual em escolas ou a imposição do véu a crianças — está a abdicar do seu princípio fundador: a autonomia e o respeito pela pessoa.
A burqa é o exemplo mais visível desse conflito. E agora também tema político em Portugal. Não é um símbolo religioso; é um símbolo político e de opressão. A burqa não está no Alcorão. É uma invenção tribal, associada ao Afeganistão dos talibãs e ao puritanismo wahabita da Arábia Saudita. É uma imposição de poder masculino sobre o corpo feminino. E é por isso que a Europa, ao proibir o véu integral em espaços públicos, não está a atacar o Islão — está a defender as mulheres e a sua liberdade. Está a dizer que o espaço público pertence a todos, que ninguém pode ser obrigado a esconder-se em nome de uma moral que não escolheu.
Curiosamente, essa proibição não é exclusiva da Europa tantas vezes apelidada de “islamofóbica”. Também é lei em vários países muçulmanos: Marrocos, Tunísia, Turquemenistão, Senegal, Azerbaijão e até partes da Síria e do Egito baniram o uso da burqa. A Arábia Saudita, onde ela nasceu, já a desaconselha. E em países como a Turquia, o Irão ou o Afeganistão, o debate em torno do véu é, hoje, um campo de batalha político. Milhares de mulheres iranianas arriscam a prisão por recusarem o hijab obrigatório. Não é a Europa que oprime — são as próprias mulheres muçulmanas que pedem a liberdade que a Europa, por cobardia ideológica, hesita em defender.
O combate ao extremismo islâmico deve ser encarado com a mesma clareza com que a Europa combateu outros extremismos. O fascismo e o comunismo destruíram a liberdade em nome da verdade política. O extremismo islâmico pretende destruí-la em nome da verdade religiosa. O método é diferente, mas o resultado é o mesmo: a submissão da pessoa ao dogma. Combater o extremismo islâmico é, pois, continuar o combate europeu contra todas as formas de tirania.
Há, contudo, uma dimensão política que não pode ser ignorada. O crescimento do extremismo islâmico alimenta, inevitavelmente, o crescimento dos extremismos europeus. Cada atentado, cada caso de fanatismo, cada imposição religiosa ilegal em território europeu é combustível para a extrema-direita. E assim, o terrorismo cumpre o seu segundo objetivo: dividir a Europa contra si própria. A islamofobia torna-se o reflexo do medo, e o medo torna-se o motor do populismo. O extremismo de um lado alimenta o extremismo do outro, até que ambos se confundem num mesmo pânico moral.
A demografia agrava o problema. A Europa está a envelhecer e a esvaziar-se. Portugal é um caso de estudo: a sua população ativa diminui todos os anos, e o país precisa de imigrantes para manter o seu sistema social e económico. Mas a imigração sem integração é apenas uma forma de deslocar o problema. Se a Europa quer sobreviver, precisa de afirmar o que é – e não apenas o que rejeita. A identidade europeia não pode ser uma categoria administrativa. Tem de voltar a ser uma ideia moral e cultural, baseada na liberdade, na igualdade e no primado da lei.
A resposta europeia tem de ser política, não apenas policial. Não basta vigiar fronteiras; é preciso reconstruir fronteiras morais. O Estado não pode aceitar que haja zonas onde a sua autoridade é substituída por preceitos religiosos. A escola pública não pode abdicar da laicidade. E o feminismo europeu não pode continuar a relativizar a opressão das mulheres muçulmanas em nome de um suposto respeito cultural. O respeito pela cultura não pode ser uma forma de indiferença perante a injustiça.
A Europa tem de compreender que o combate ao extremismo islâmico não é uma guerra contra o Islão. É uma guerra pela liberdade. E essa liberdade tem de ser afirmada com coragem, não apenas com compaixão. Os imigrantes que procuram a Europa não vêm por ódio à sua cultura, mas pela promessa de uma vida melhor. É essa promessa que precisa de ser cumprida, não através do multiculturalismo difuso, mas através de um projeto político claro: um contrato cívico que define direitos e deveres, liberdade e responsabilidade.
O extremismo islâmico é uma ameaça real, mas o maior perigo é a Europa continuar a fingir que não sabe o que está em jogo. A lei da sharia, a burqa, a segregação e o terrorismo são sintomas de um mesmo fenómeno: o avanço de uma visão do mundo que nega o indivíduo. A Europa só sobreviverá se for capaz de defender o indivíduo contra o coletivo, a mulher contra o patriarcado religioso e a lei civil contra o dogma teocrático.
Em última instância, a luta contra o extremismo islâmico é a luta pela própria Europa – não a Europa geográfica, mas a Europa política e espiritual. A Europa que nasceu da razão e da dúvida, da liberdade e da igualdade, e que agora hesita diante do fanatismo por medo de parecer intolerante. Mas o verdadeiro intolerante é o que impõe o silêncio. O verdadeiro racismo é o que aceita a submissão das mulheres em nome do respeito cultural.
Não há nada mais europeu do que defender a liberdade de todos, inclusive daqueles que acreditam de outro modo. Mas essa liberdade exige um princípio: que nenhuma crença, nenhuma cultura e nenhuma lei religiosa possa sobrepor-se à dignidade humana. É isso que está em causa – e é isso que a Europa tem de recuperar, antes que o véu do medo cubra o seu próprio rosto.



