Bond nunca vence porque tem mais armas; vence porque percebe antes dos outros que o perigo já começou. A Europa está exactamente neste ponto, entre perceber ou ignorar. A nova cortina de ferro cai devagar, mas cai.”  

 

Há uma cena em The World Is Not Enough em que M, encarcerada numa cela subterrânea, observa o avanço implacável de um inimigo que conhece demasiado bem: o tempo. Não é a explosão iminente que a assusta, mas a compreensão de que a arquitectura de segurança que sempre tomou por garantida está a ruir à sua volta. 

 

A Europa está hoje nesse momento típico de um thriller geopolítico à James Bond, presa numa sala que pensa controlar, mas onde as paredes se movem sem ela reparar, aliás, creio que agora já reparou. 

 

Durante décadas convencemo-nos de que o pós-Guerra Fria era uma estação terminal. Agora percebemos que era apenas um intervalo. A verdade, por mais desconfortável que seja, é simples: a Europa já entrou na sua nova Guerra Fria, ainda que hesite em admiti-lo. Estados Unidos, Rússia e China disputam áreas de influência num tabuleiro onde o continente europeu passou de actor principal a território inimigo. 

 

Washington deslocou a sua prioridade estratégica para o Indo-Pacífico; Moscovo tenta reconstruir zonas de domínio; Pequim opera na sombra, comprando tempo, influência e silêncio diplomático. A Europa é simultaneamente demasiado rica para ignorar e demasiado fraca para intimidar. E isso é sempre um convite ao isolamento.

 

A antiga cortina de ferro caiu de leste para oeste. A nova desce de norte para sul, separando democracias que ainda acreditam no ideário europeu, Estado de direito, direitos humanos, economia aberta, de um arco de autoritarismos agressivos e Estados frágeis onde a política externa se tornou militarizada. 

 

A invasão russa da Ucrânia não é apenas uma guerra territorial; é a confirmação de que a Europa voltou a ser um espaço de risco geopolítico. A dependência energética, financeira e tecnológica expôs vulnerabilidades que durante décadas recusámos ver. Não basta aumentar orçamentos de defesa ou diversificar fornecedores. O desafio é estrutural: a Europa precisa de se reconstruir enquanto projecto político antes de tentar reconstruir a Ucrânia.

 

É aqui que entra Wolfgang Münchau, um dos analistas e economistas europeus mais lúcidos, que tem insistido que a Alemanha precisa de uma reconstrução interna económica, industrial e estratégica se quiser evitar a irrelevância. O seu argumento é claro: a Europa funciona quando a Alemanha lidera, mas colapsa quando Berlim hesita, perde tempo ou finge que não vê. Hoje, a Alemanha encontra-se numa encruzilhada perigosa: desindustrialização acelerada, energia cara, dependência tecnológica externa e uma máquina administrativa lenta. 

 

Münchau defende que só um choque de modernização comparável ao da década de 1950 permitirá a Berlim voltar a ser o motor económico e político do continente. E, gostemos ou não, a Europa não se reerguerá sem uma Alemanha reconstruída. Não se trata de hegemonia, mas de física política: cada união precisa de um coração. O problema é que esse coração está cansado, dividido e desconfortável com a responsabilidade histórica que lhe cabe. Mas, numa nova Guerra Fria, não liderar é tão arriscado como liderar mal. A metáfora Bond volta a ser útil: quando o mundo ameaça desmoronar, não há espaço para dúvidas existenciais. Há apenas decisões.

 

Friedrich Merz percebeu, talvez melhor do que qualquer líder alemão desde o início do século, que o país chegou ao fim do seu modelo económico e estratégico. Durante décadas, a Alemanha viveu apoiada em três pilares que hoje já não existem: energia barata vinda da Rússia, exportações garantidas pela globalização e uma defesa assegurada pelos Estados Unidos. 

 

Merz encontrou uma Alemanha confortável, mas estruturalmente vulnerável, e decidiu romper com essa complacência. Reforçou de imediato o investimento nas Forças Armadas, acelerando o tão adiado fundo especial para modernizar equipamento, aumentar o número de efetivos e preparar o Exército para cenários de ameaça real na fronteira leste da NATO. 

 

Avançou também com a reintrodução de um serviço militar obrigatório modernizado, não como nostalgia militarista, mas como resposta a uma Europa que voltou a viver em ambiente de pré-conflito e que necessita de reservas treinadas e prontas. 

 

Em paralelo, iniciou reformas profundas para reduzir a dependência energética, apostando numa transição mais estratégica e menos ideológica, com diversificação de fontes, reforço da capacidade nuclear e investimento em infraestruturas críticas. Finalmente, lançou um programa de simplificação regulatória para reindustrializar a Alemanha, encurtar processos de licenciamento e atrair novamente investimento tecnológico e industrial que o país vinha a perder para os EUA e para a Ásia.

 

Não são medidas simbólicas; são cortes profundos nas crenças que moldaram a política alemã durante trinta anos. Merz sabe que, sem uma Alemanha capaz de assumir o seu papel histórico de motor económico e âncora política do continente, a Europa ficará à deriva. Ao recentrar a economia na produção, ao reforçar a autonomia energética e ao adoptar uma política externa e de defesa mais assertiva, o chanceler procura reconstruir o coração da Europa antes que seja demasiado tarde. E essa coragem, tantas vezes adiada em Berlim, poderá marcar a diferença entre uma Europa que resiste e uma Europa que se deixa empurrar pela História.

 

Se a Alemanha tem de se reconstruir, a União Europeia tem de se reinventar. O modelo concebido nos anos 1990 para uma economia globalizada e pacífica já não serve um mundo fragmentado, armado e competitivo. 

 

Algumas ideias que circulam entre analistas britânicos e franceses convergem em três direcções fundamentais: uma Europa que deixe de ser apenas potência regulatória e assuma capacidade estratégica; uma reindustrialização orientada para sectores essenciais, não para competir com a China em volume mas para garantir autonomia; e um novo pacto político entre Estados capaz de avançar sem unanimidades paralisantes. O que está em causa não é substituir o método comunitário por um directório, mas criar condições para que o continente não fique eternamente refém dos que recusam acelerar.

 

No meio desta transformação, o Reino Unido reaparece como o personagem que saiu do filme mas percebeu que afinal o filme fica incompleto sem ele. Com a guerra na Ucrânia, a ameaça russa e a competição tecnológica global, Londres percebeu que está demasiado exposta para viver isolada. Não se trata de reverter o Brexit, uma porta fechada por uma geração, mas de reconstruir uma parceria estruturada com o continente nas áreas da defesa, energia, ciência e indústria. 

 

O pragmatismo britânico regressa quando o perigo é real, e a Europa, com todas as suas hesitações, continua a ser o parceiro natural de Londres. Nenhuma arquitectura de defesa séria pode ignorar a potência militar que mais investiu em capacidade real na última década.

 

Ao mesmo tempo, a Europa precisa de reconstruir a sua política de alianças para lá do seu próprio perímetro. O continente não pode continuar dependente de um único eixo estratégico, nem viver apenas voltado para si. 

 

A nova realidade geopolítica exige que a Europa volte a olhar para África com uma visão de longo prazo, não como espaço de caridade, mas como parceiro económico e energético fundamental, onde competem hoje a China, a Rússia e a Turquia. 

 

Exige também uma aproximação séria ao Mercosul e a países como o Brasil, a Argentina e o Chile, mercados com recursos críticos, potencial industrial e capacidade de diversificação estratégica. O Canadá e o México surgem igualmente como aliados naturais, pela sua estabilidade institucional e pelo papel que podem desempenhar como contrapesos num mundo multipolar. 

 

A Índia, a Coreia do Sul, a Austrália ou a Indonésia representam ainda economias emergentes que procuram alternativas à rivalidade sino-americana e que podem encontrar na Europa um parceiro tecnológico e regulatório capaz de equilibrar o jogo global. Uma Europa que queira sobreviver não pode esperar que os aliados a procurem; tem de ser ela a construir pontes, a identificar oportunidades e a assumir o papel de potência que tanto relutou em desempenhar.

 

Bond nunca vence porque tem mais armas; vence porque percebe antes dos outros que o perigo já começou. A Europa está exactamente neste ponto, entre perceber ou ignorar. A nova cortina de ferro cai devagar, mas cai. 

 

E não é a Rússia que a ergue sozinha; é a combinação de três forças que convergem num objectivo implícito: uma Europa isolada, dividida e dependente. Washington olha para o Indo-Pacífico, Moscovo para o seu império perdido, Pequim para a hegemonia global. A Europa precisa de olhar para si própria, e depressa. Reconstruir a Alemanha, reinventar a União, reaproximar o Reino Unido, fortificar alianças, modernizar indústrias, defender democracias: é um programa ambicioso, mas não é ficção. É o mínimo indispensável para que o continente deixe de ser a personagem secundária num filme filmado por outros.

 

Em The World Is Not Enough, a lição é clara: o mundo nunca basta quando deixamos que outros decidam por nós. Para a Europa, chegou o momento de escolher se quer continuar a ser cenário ou finalmente protagonista.