Se houve um mito mobilizador na história da União Europeia foi a ideia de fronteiras abertas. Não só o facto de as fronteiras estarem literalmente abertas, mas também uma ressignificação da ideia de fronteiras e da experiência de as atravessar, uma realidade cada vez menos política e cada vez mais cultural, de convívio e encontro de diferenças. Foram as cidades e capitais europeias da cultura que, desde 1985 (precisamente o mesmo ano do acordo de Schengen), passaram a mostrar-se aos cidadãos europeus, convidando-os  a conhecer outros países europeus através das suas cidades. 20 anos antes, tínhamos os “jogos sem fronteiras”, uma ideia de Charles de Gaulle, na continuidade do tratado do Eliseu assinado com Adenauer.

Já então se punham nas televisões as cidades médias europeias de toda uma Europa de cidades, meio a competir meio a brincar, cidades que assim se visitavam reciprocamente. Esta fronteira valorizada, não como barreira que serve o propósito de impedir a passagem às pessoas, mas  como experiência formadora, entrou no ADN do ensino superior europeu com o programa Erasmus, criado em 1987, programa que beneficiou milhões de jovens europeus, muitos deles hoje com mais de quarenta anos e com capacidade de influir nos nossos destinos colectivos.

Portanto, para os cidadãos, a Europa não foi apenas nem sobretudo o projecto de remoção de obstáculos a um mercado único, cada vez mais neoliberal, cada vez menos empenhado no pilar da coesão social, como foi para esferas de interesse com cada vez mais poder. Para os cidadãos, foi um projecto de comunidade alargada de fronteiras benignas, aliás consentâneo com o ideal da sociedades do conhecimento, onde a única fronteira a transpor é a do desconhecimento.

Mas este mito que funcionou durante décadas para os cidadãos europeus, deixou de mobilizar. Os motivos desagregadores que se apresentam para isso são conhecidos mas, bem escrutinados, verifica-se que são falsos. São demasiado débeis para que se lhes possam  atribuir tantas consequências.

Um problema antigo

Fala-se de refugiados, migrantes, terroristas, numa amálgama que diferencia o que não devia diferenciar, migrantes para um lado e refugiados para outro, quando na verdade todos estão condenados ao pior se não forem acolhidos. De outro modo, como se teriam disposto aos perigos por que passaram? Em 2017, mais de três mil morreram no mar, e, crê-se fundadamente que ainda é maior o número dos que morreram no deserto. Chegaram à Europa (?) 170 mil. Uma amálgama que, por outro lado, não diferencia o que devia diferenciar: entre todos estes e terroristas, que com eles nada têm que ver.

É sabido que a base de recrutamento do terrorismo é, no essencial, a própria população europeia, a braços com os seus problemas crescentes de exclusões e desigualdades. Aliás, o terrorismo na Europa não é mais letal nos dias que correm do que foi nos tempos do IRA e da ETA. E na verdade a história da Europa, sobretudo a moderna, é também uma história de terrorismo, ou não tivesse o próprio conceito emergido na Europa e por sua causa. Portanto, não se trata de uma nova ameaça ao projecto europeu, antes de um problema antigo que deveria encontrar nele uma resposta.

Por outro lado, a crise migratória está longe de enfrentar o tipo de descontrolo que muitas peças divulgadas pelos media nos querem fazer crer. O número de pedidos de asilo não está a crescer, até baixou significativamente no ano passado, o que está bastante relacionado com uma situação menos desesperada na Síria. Os migrantes económicos oriundos de África são muito menos e perfeitamente integráveis. Ao longo dos últimos anos, o total acumulado de pedidos de asilo não excede um ponto percentual da população europeia.

Em Portugal, não se chega sequer à vigésima parte desse ponto percentual. E dos que foram recolocados cá, ao abrigo do Programa de Recolocação da UE, sensivelmente metade seguiu depois em direcção a outras paragens, muito provavelmente por causa de laços de família e de comunidade.

Ainda assim, as pessoas facilmente dão forma e cor a cenários absurdos, que se alastram histericamente. Ouve-se que é preciso proteger o futuro dos nossos filhos, que está em causa a sua segurança, que não temos condições para receber tantos, e que ou se faz alguma coisa ou é o caos. Estas conjecturas são pura e simplesmente ridículas. Estivéssemos a falar de meio milhão, como sucedeu com os retornados, mas não, não estamos a falar sequer da sua centésima parte.

A absolutização da opinião individual

Pode haver uma percepção desproporcionada que resulta da desproporção com que os media representam a realidade, agudizando contrastes culturais, magnificando inadaptações insuperáveis. Mas há uma dimensão do problema a montante, de que também os media são reflexo, e que consiste numa intolerância crescente, que já não é apenas religiosa ou cultural, mas intolerância ao mínimo sacrifício do nosso estilo de vida em prol de outros. E também intolerância à crítica da opinião própria, como se o respeito pela vontade democrática devesse significar o respeito acrítico por todas as opiniões, como se ser-se posto em causa se tivesse tornado numa modalidade da violação da privacidade ou das liberdades mais fundamentais do indivíduo.

Esta ruptura com qualquer tolerância a ser-se confrontado é o outro lado da moeda  de uma sociedade ao mesmo tempo hiper-individualizada e hiper-relativista. À semelhança da teoria da relatividade, que tem um ponto de apoio não relativo — a velocidade da luz constante —, o relativismo da opinião pública apoia-se na absolutização da opinião individual. Este hiper-relativismo, além de hiper-sensível à crítica, é dogmático. Quando não aceita a relativização, o relativismo encasula-se e torna-se um problema.  Ou sai do espaço público ou, pior, entra nele de burca vestida. Não conversa, apenas concorda ou discorda.

Este quadro hiper-individualista de relatividades absolutizadas ampara-se ainda numa configuração da sociedade baseada na competição. A crítica social e política a esta configuração tem de ser feita e deve ser ligada ao estado de coisas que descrevemos. Tem de ir além do facto de que a competição se faz à custa de outros que saem derrotados, os perdedores da sociedade. Sociedades assentes na valorização da competição, onde mesmo a cooperação pode não ser mais do que mais uma estratégia competitiva, reduz as motivações da acção humana a uma relação entre sujeitos, em que uns vencem e outros perdem.

Mas, nesse sentido, a competição é um movimento de sentido que nos desliga coletivamente do sentido do mundo. Mesmo quando aparece como cooperação, resta saber com vantagem sobre quem! Agir, com sentido, deve resultar de um projecto de existência, individual, comunitária, global, em que alguma coisa está a ser realizada, com sentido para quem a realiza e para todos os outros a quem essa realização traz impactos. Agir movido por um estímulo de competição é verdadeiramente um logro. Por isso, deve haver maior atenção crítica às formas de espectacularização da competição, desportivas, televisivas, em redes sociais, que se vão instalando como modelo nas vidas quotidianas das pessoas, recalcando e neutralizando os factores que deveriam ser verdadeiramente determinantes de uma acção com sentido.

Levada suficientemente longe a crítica, deve questionar-se a própria ideia de que é uma coisa boa que haja uns melhores do que os outros. O que é que isto significa exactamente? Uma pessoa ser empenhada ou virtuosa é relevante.  Mas ser-se  a melhor é apenas a cenoura que faz da competição não apenas uma mas a razão de agir, e que nos desliga de um projecto de realização de comunidade — de que as fronteiras abertas eram uma boa mitologia — que faz falta à Europa de cidadãos retomar.

Um acordo que é um enorme recuo

Lamentavelmente, não é isso que acontece. O acordo sobre migrantes a que se chegou esta semana no Conselho Europeu foi um enorme recuo. Primeiro, porque se passa a desembarcar os migrantes fora da UE, segundo, porque se toma por não obrigatório o acolhimento de refugiados e migrantes na UE, terceiro, porque consagra explicitamente a figura do “campo” que, chamem-lhe de transição ou plataforma, dará lugar à instalação de campos de detenção a céu aberto, pequenas faixas de Gaza a aprisionar muitas crianças.

Viktor Órban está cada vez menos sozinho nesta Europa. Salvini em Itália e agora este novo ministro do Interior alemão Seehofer. Quem não for retido longe das fronteiras europeias, ficará detido dentro delas. Por isso, com este acordo, a Europa fortaleza vai construir mais um fosso em seu redor. Migrantes tentam, em desespero, chegar antes que as regras endureçam. E, por isso, só na última semana morreram duas centenas no mar.

Portugal devia ter vetado o acordo e não se deve esconder atrás de discursos politicamente avançados para depois ser tímido a acolher. Pode haver outros destinos mais desejados por refugiados e migrantes, o que só torna ainda menos compreensível que o ministro da Administração Interna tenha dito que só temos capacidade para acolher 10% dos 230 migrantes a bordo do Lifeline. Só se fosse o presidente da junta de uma pequena freguesia! Se há país que tem a experiência da migração é Portugal.

As diásporas, com ou sem romantismo pátrio, são um facto que se confunde com a história do país. Os descobrimentos que se prolongaram num projecto de colonização, sobretudo em África e no Brasil. E quando o Império colonial já não era solução, com uma guerra de obstinação contra o seu próprio tempo, foram a Venezuela, os Estados Unidos, o Canadá e, na Europa, a França, o Luxemburgo, a Suíça, a África do Sul. Muitos pedidos de asilo, em França, na Suécia, por exemplo; muitos mais migrantes económicos, que fugiam da miséria, mas não da morte.

Ainda agora acabámos de sair de uma maciça emigração por conta da austeridade. De novo para o Brasil e muitos destinos na Europa: o Reino Unido, a Alemanha, etc.  Números redondos: 1,5 milhões de portugueses vivem na UE. Portugal tem a experiência do que é ser o outro acolhido pela Europa. Agora que é Europa de pleno direito deve usar essa experiência para recordar, pelo exemplo, o acolhimento.

 O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.