“É melhor escaparem cem culpados, do que um inocente sofrer”. Esta frase de Benjamin Franklin, um dos Founding Fathers dos EUA, replica a ideia de muitas outras personalidades relevantes da história civilizacional, como Voltaire. Um conceito que aparece inclusive no Livro do Génesis, escrito vários séculos antes de Cristo, mas mais importante para o tema em causa, é a proferida por Sir William Blackstone, jurista, juiz e político inglês, que se veio a traduzir num dos pilares da lei criminal dos países anglo-saxónicos, no conhecido rácio de Blackstone, onde “é melhor que dez culpados escapem, do que um inocente sofra”.

É um conceito moral que está também incrustado na lei penal portuguesa, desde logo na ideia de que todos são inocentes até prova em contrário. Mas, na prática, no conjunto de salvaguardas que tentam ao máximo limitar o erro de condenar um inocente, mesmo que para isso se abram as portas para libertar vários culpados, tornando mais complicada essa condenação.

É um conceito que está presente em vários outros campos da sociedade, que limitam a liberdade individual, no sentido de proteger os erros perante o “inocente”. Por exemplo na saúde com a obrigatoriedade, por vezes exasperante, de os medicamentos terem de passar por vários níveis de validação, ou muitos serem tão-só disponibilizados apenas mediante apresentação de receita médica. Isto acontece devido ao mesmo conceito moral de protecção: impedir o sofrimento de alguém é mais importante do que a possibilidade de aliviar o sofrimento de alguém.

É este o conceito que deve estar em discussão prévia no tema da eutanásia. Muito antes de se chegar às questões de ética médica ou de religião, porque primeiro está a moral. Abrir a caixa de Pandora em que se possibilitará o homicídio, é isso que é uma eutanásia involuntária, para aliviar o sofrimento de alguém, transforma uma atitude de compaixão num acto de egoísmo injustificável. Não há nada pior que um inocente sofrer injustamente, nada, nem mesmo um inocente sofrer podendo tal não acontecer.

Infelizmente, enquanto sociedade, ainda somos imberbes ao nível da cidadania e da literacia. Transformámos o tema num campo de batalha, atitude ignóbil liderada por uma classe política desprovida de qualquer sentido moral, em que só importam os seus interesses pessoais ou partidários.

Não sou contra o princípio singelo da eutanásia, mas sou irredutível contra a eutanásia de palas nos olhos. É praticamente impossível abrir esta caixa de Pandora e não ficarmos com sangue de inocentes nas mãos, bastando um que seja para invalidar a aceitação desta prática.

E não podemos dizer que não há dados para nos preocupar. Há. Sejam notícias como esta, esta, ou estudos como este. A questão a colocar é clara, num país onde quase toda a supervisão falha nas suas competências, onde 70% dos doentes não têm acesso a cuidados paliativos, onde 71% das mortes de adultos e 33% das mortes de crianças se devem a doenças que necessitam de cuidados paliativos, onde já hoje morrem doentes à espera de cuidados nas urgências. Vamos mesmo abrir uma porta tenebrosa em nome do alívio de alguns, por muito merecido que este possa ser?

Não podemos permitir a eutanásia dos sentidos perpetrada pelas várias claques, nomeadamente o sentido da moral, porque uma sociedade sem moral é uma sociedade sem futuro, sendo que não é um tema para referendar ao nível básico do sim ou não. Rejeitamos em absoluto a pena de morte para criminosos, mas vamos abrir a porta à pena de morte para inocentes através de erros de julgamento na decisão de eutanasiar alguém?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.