Nos últimos dias tem-se assistido a um vitorioso movimento celebratório por parte dos pequenos investidores um pouco por todo o mundo, em conjunto com aqueles que apoiam a vitória do pequeno contra o grande, do desprovido contra o privilegiado, dos 99% contra os 1%.

Desta vez a celebração deve-se ao sucesso da estratégia de investimento que foi coordenada num fórum do Reddit (o Wall Street Bets ou WSB) por dezenas de milhares (talvez centenas de milhares, quem sabe) de pequenos investidores (a maior parte amadores, mas nem todos, atenção), cujo objetivo era “entalar” os hedge funds que apostaram de forma alavancada e especulativa na queda das ações da GameStop Corp., um retalhista de videojogos que estava perto da falência.

O “entalanço” de posicionamentos deste género pode ser particularmente monumental porque se no caso do investimento tradicional em ações as perdas estão limitadas a 100% (ao capital que se investiu) e os ganhos são potencialmente ilimitados, no caso da aposta na queda é o contrário que se verifica. Os ganhos estão basicamente limitados a 100% (se o preço da ação for para zero e se a aposta não for alavancada), e as perdas são potencialmente ilimitadas!

Com as ações da GameStop Corp. a subirem mais de 1200% em 2021 (depois do exército do WSB as comprar ou comprar calls das mesmas) as perdas nesse tipo de posicionamentos não são ilimitadas, mas podem facilmente ser consideradas monumentais. Alguns dos hedge funds que fizeram a aposta na queda das ações da GameStop Corp. fecharam, outros tiveram que implorar aos seus clientes que capitalizassem os fundos, outros desistiram totalmente da estratégia de apostar na queda de ações de forma genérica… Uma clara, rápida e épica vitória dos pequenos investidores contra os “grandes” e especulativos fundos de Wall Street numa batalha dentro daquela que é a interminável competição dos mercados financeiros.

Motivados pela sua vitória (e gananciosos pela próxima), o exército do WSB começou logo a salivar pelos alvos seguintes. Não faltou muito até que várias ações de empresas com poucas perspetivas de negócio e más condições financeiras (contra as quais muitos hedge funds apostavam) começassem a subir expressivamente. Dois dos principais alvos seguintes foram a AMC Entertainment Holdings, uma holding de salas de cinema e teatro (imagine-se a dificuldade por que estão a passar), ou a BlackBerry Ltd, a fabricante dos antigos smartphones com teclado (líderes no seu tempo, mas abandonados há vários anos).

A festa dos pequenos investidores tomou proporções inéditas, com o fórum onde todos se encontram (r/wallstreetbets no Reddit) a ultrapassar atualmente os oito milhões de seguidores, e está a fazer crescer o receio entre os profissionais, em Wall Street. Mas talvez não pelas razões que o exército do WSB gostaria. Mas já lá vamos… Antes disso, algum contexto adicional para esta festa, que não está só relacionada com estas vitórias mais recentes.

Pequenos investidores ganham batalhas há vários anos

A vitória na batalha da GameStop Corp. foi a mais gritante até agora, porque a coordenação entre o exército de investidores foi planeada e não uma coincidência. Mas a verdade é que os pequenos investidores estão há vários anos a ganhar batalhas contra os profissionais.

Dois bons exemplos disso são as histórias das criptomoedas e da Tesla. Há vários anos que os profissionais (eu incluído) questionam os fundamentos da valorização de ativos como as criptomoedas ou as ações da Tesla. Por inovadora que seja a tecnologia por trás das criptomoedas, nunca consegui contornar o facto de que não existia qualquer tipo de garantia caso o custodiante das minhas criptomoedas sofresse um ataque informático (como aconteceu em vários casos), ou caso eu pisasse a pen drive que continha as minhas criptomoedas (circula uma história de um investidor que não sabe a password para uma pen drive que contém vários milhões de dólares em criptomoedas – provavelmente falsa, mas ainda assim possível).

Por extraordinário que seja Elon Musk, ao nível da inteligência, da visão empreendedora, da postura irreverente, nunca consegui contornar a realidade de que a empresa esteve várias vezes perto da falência (o próprio fundador já admitiu que a determinado ponto via a probabilidade de sobrevivência da empresa abaixo dos 10%), de que queimou vários milhares de milhões durante mais de 15 anos até conseguir dar algum lucro (não sei se alguma empresa alguma vez demorou tanto tempo e dinheiro para consegui-lo), e que mesmo assim depende em grande medida de créditos fiscais para o conseguir.

Errado nos dois casos (pelo menos até agora), em conjunto com uma grande fatia dos profissionais do setor, enquanto que os pequenos investidores, auxiliados pela sua paixão e crença na inovação, têm colhido avultados lucros ao investir nestas duas histórias.

Mas não tem sido só pela sua crença na inovação que os pequenos investidores têm sido auxiliados, o que nos leva de volta ao receio dos profissionais.

O receio dos profissionais

O exército do WSB celebra o medo que semeou entre os hedge funds focados em estratégias long/short (que incluem apostas na queda de ações), os danos que lhes causaram, e têm motivos para isso. Mas estão equivocados quando extrapolam esse medo para o resto de Wall Street.

A realidade é que este tipo de hedge funds representam apenas uma pequena fatia daquilo que é Wall Street como um todo, que (infelizmente) é muito provável que vários fundos estejam na verdade a lucrar bastante com a subida destas ações à custa de pequenos investidores que estão a embarcar na onda da GameStop Corp. (por exemplo um dos maiores acionistas da GameStop Corp., a sul coreana MUST Asset Management, anunciou recentemente que vendeu toda a sua posição, que representava cerca de 5% da empresa), e por fim que (também infelizmente) Wall Street como um todo vai ganhar mais com o exército do WSB do que vai perder.

Uma dura realidade e que pode ser considerada injusta, mas que não deixa de ser real por isso. Mas isto não quer dizer que os profissionais estejam tranquilos, pelo contrário.

Um dos motivos pelos quais os profissionais estão receosos é porque a crescente participação dos pequenos investidores no mercado acionista está historicamente associada aos picos de mercado. Foi assim na bolha dos anos 30, que posteriormente causou a maior depressão económica de que há registo. Foi assim na bolha das dotcom, ainda que dessa vez as consequências para a economia real tenham sido menores.

Isto acontece porque, infelizmente, estes investidores são atraídos não propriamente pelos fundamentais dos investimentos, mas sim pelos recentes ganhos que eles têm gerado, pela crença de que vão continuar, ou pela volatilidade, pela aliciante tentação de conseguirem capturar alguma dessa volatilidade em seu benefício.

Mas o problema é que, normalmente, os ativos que atraem as massas tipicamente já registaram fortes valorizações (caso contrário não tinham chamado a atenção), e estas fortes valorizações, por uma questão relacionada com a lei da gravidade, dificultam subsequentes valorizações. É nestas fases que tipicamente os investidores mais prudentes estão a reduzir as suas posições (como aconteceu por exemplo com a sul-coreana MUST Asset Management e a GameStop Corp), enquanto que os mais crédulos estão a comprar.

Mas não é esta dinâmica só por si, e o seu paralelismo histórico com picos de mercado, que preocupa Wall Street. Diria até que são mais as diferenças da atual conjuntura de mercado face a outros picos de mercado que causam mais receios, e também que mais têm auxiliado os pequenos investidores.

Seja nos anos 30, seja na bolha das dotcom no final dos anos 90, o mercado acionista tinha uma força gravitacional relativamente forte para combater as exuberâncias dos investidores. Nos dois casos as taxas de juro de referência encontravam-se em níveis mais “pesados”, entre os 3% e os 5% nos mercados desenvolvidos, ao passo que hoje nos encontramos colados a 0% (um custo de oportunidade demasiado leve).

Por cima disso, tivemos ao longo do último ano a criação de nova moeda inexplicavelmente massiva, sem qualquer precedente, em basicamente todas as economias do mundo, para combater o choque económico da pandemia. Mas que também funciona como se fosse um gigante balão de oxigénio para as exuberâncias dos investidores.

Isto significa que as exuberâncias que estão a surgir em vários cantos do mercado acionista (embora não necessariamente em todo o mercado) não têm uma força gravitacional à altura, para combatê-las. Bem pelo contrário, estão a ser devidamente alimentadas por mais estímulos monetários e económicos. Podem por isso durar vários anos, e levar a valorização de alguns ativos para níveis ainda mais estratosféricos, irracionais. O que é sem dúvida um desafio e um motivo de preocupação para quem justifica os seus investimentos com análises mais térreas, menos exuberantes, que por consequência também prometem rentabilidades mais térreas, menos exuberantes.

Há um adágio de mercado que ensina que é preciso ter cuidado ao tentar combater a teórica irracionalidade do mercado, pois o mercado pode manter-se irracional mais tempo do que nós conseguimos ficar solventes. Acho que esse adágio se aplica melhor do que nunca a algumas situações do mercado acionista (e a outras que poderão ainda surgir), visto que as condições para que alguma irracionalidade se mantenha estão cá, e muito provavelmente estarão durante vários anos.