A relação entre a força e o direito sempre foi tensa, o que na verdade mais não exprime que uma dificuldade filosófica: a relação entre a realidade que temos e aquela que achamos que deveríamos ter (a qual, nos casos mais felizes, passa da aspiração moral para o reconhecimento efetivo pela lei positiva) não é nem clara nem nunca está definitivamente assegurada; o que não significa que não tenha importância. É por isso que, passando da normatividade moral para a legal, se criam estruturas cujo fito é assegurar a efetividade do que o legislador considera justo.
Ficando-me pelo exemplo mais óbvio e mais regularmente citado: a criação das Nações Unidas em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foram~, em grande medida, motivadas pelo desejo de evitar a barbárie a que se assistira na Segunda Guerra Mundial e as atrocidades do nazismo.
Porém, e como tudo aquilo que depende da vontade humana, as conquistas em termos de direitos são frágeis. Tome-se como exemplo o direito internacional que, mal ou bem, com todas as suas insuficiências e, por vezes, injustiças, ainda assim se foi erigindo na segunda metade do século XX; ou, ainda, a vontade fundadora do projeto daquilo que hoje conhecemos como União Europeia, e que tinha como pedra de toque fundamental ser um projeto de paz; projeto ancorado na já vetusta tese liberal do doce comércio – portanto, impossível na prática se gorada a possibilidade de criação de uma prosperidade partilhada – mas, ainda assim e sobretudo, um projeto de paz.
Não precisamos de pensar muito ou projetar para muito longe das nossas fronteiras a análise para perceber de que forma fundamental a própria ideia da legitimidade do direito ou da priorização da paz se encontram hoje profundamente desafiadas. Vemo-lo, certamente, no plano da política internacional. Mas permita-se-me avançar aqui uma hipótese, sem qualquer pretensão de lhe conferir algum valor explicativo de forma causal (apenas constato o fenómeno). Essa hipótese é a de que estes fenómenos se ancoram numa conceção performativa da ação que se tem ou do discurso que se enuncia sem mais, sem qualquer intenção de justificação ou legitimação daquilo que se diz ou se faz.
Significa isto que ações e palavras são hoje mais despudoradas do que o eram num passado recente porque se tem tendido a perder duas coisas: primeiro, uma certa noção de elevação do discurso público e de respeito pela opinião alheia – vemo-lo no discurso dos líderes populistas, mas também na algazarra entrópica das redes sociais; segundo, e de forma mais profunda, porque a própria ligação causal entre palavra e ação tende a perder-se ou, pelo menos, a deslocar-se para uma performatividade de segunda ordem; se um político mente constantemente ou promete o que sabe ser impossível, nada disso importa no ritmo frenético do bombardeio de conteúdo.
A fragilização dos direitos anda, por isso, a par com a da verdade ou da necessidade de justificação. E isso permite-nos talvez compreender porque é que o racismo dantes escondido passa a aparecer abertamente ou como pode ser possível prever-se negócio imobiliário num território ocupado e onde a população é vítima de genocídio. Vejamos rapidamente duas faces deste fenómeno.
Democracia e liberdade de expressão
Não é só o direito internacional que se encontra em profunda crise, são também as democracias face ao estilo autocrático que se têm vindo a impor na última década. Voltemos a este ponto apenas sob o ângulo dos direitos, e com um único exemplo, o da liberdade de expressão. A este respeito, os Estados Unidos da América são, hoje, um caso de estudo. E um caso ao qual devemos certamente dar atenção porque se, certamente, numa fase inicial, houve influência europeia (e nomeadamente do governo húngaro de Orbán) em Trump, hoje é para o outro lado do Atlântico que os simpatizantes europeus desta tendência olham em busca de inspiração.
Como defendeu Daniel Oliveira, há um padrão histórico que se tende a repetir (vimo-lo nos anos 30 do século XX na Europa): lança-se o caos e a violência para em seguida se impor a ordem, e a questão da liberdade de expressão desempenha, como ele argumenta, um papel neste processo. Há uns meses, a versão maximalista da liberdade de expressão defendida por J. D. Vance colocava-o a acusar de censura as democracias europeias quando estas combatiam a desinformação e o discurso de ódio.
Pois eis que, há poucos dias, o sintomaticamente recém-rebatizado Departamento de Guerra dos EUA emitiu um memorando a exigir que os jornalistas obtenham autorização para publicar artigos (incluindo sobre informação não classificada), sob pena de verem o acesso ao Pentágono revogado – qualquer semelhança entre esta decisão de condicionamento da liberdade de imprensa e um mecanismo de ‘censura prévia’ talvez seja uma mera coincidência. A esse respeito, o episódio de suspensão e posterior readmissão do humorista Jimmy Kimmel na ABC, bem como os múltiplos processos judiciais interpostos por Trump contra meios de comunicação social que ousem criticá-lo, dizem muito sobre o clima de condicionamento e medo que se tem vindo a instalar nos EUA por ação do próprio Presidente. Também aqui se joga a dissolução da componente liberal da democracia, ao erodir-se os frágeis direitos que a sustentam.
O reconhecimento do Estado da Palestina
Por outro lado, o facto político internacional marcante dos últimos dias é o reconhecimento do Estado da Palestina por parte de um conjunto de países tradicionalmente próximos de Israel, e como parte de um movimento alargado coincidente com a 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Com efeito, para além de Portugal, França e Reino Unido, cujo reconhecimento concentrou mais o nosso espaço mediático, também o Canadá, a Austrália, a Bélgica, Luxemburgo, Malta e Mónaco o fizeram.
Dir-se-á: é uma vitória de Pirro. E, com efeito, este movimento de reconhecimento soa um pouco a too little, too late. Por um lado, tal reconhecimento já era amplamente maioritário entre os países membros da ONU, rondando agora os 80% o número de países que reconhecem a Palestina. E, como tem sido notado, ele de nada servirá se não for acompanhado pelos mecanismos políticos efetivos capazes de condicionar Israel de tal forma que sejam capazes de travar um genocídio cuja existência, já antes defendida pela associação internacional de académicos na área dos estudos sobre o genocídio, a ONU veio agora confirmar. Ou, já agora, da dotação das condições políticas e materiais para que tal Estado venha verdadeiramente a tornar-se efetivo.
Mas, como reafirmou António Guterres, o reconhecimento do Estado da Palestina é um direito. Um direito evidentemente frágil e mais do que condicionado pela caução dada pelos EUA a Israel para que continue a agir impunemente em Gaza. Até agora, a força despudorada tem-se sobreposto totalmente a qualquer direito. Mas esperemos que este passo simbólico se faça em breve acompanhar da coragem política para traçar o retorno urgente à paz.