Vi o filme “Greed” (Ganância) de Erich von Stroheim, de 1924, quando estudante de cinema em Estocolmo. Passaram décadas e esta obra-prima do cinema insiste em ser-me recordada sempre que assisto à ganância e às suas consequências em ação, uma ocorrência quase diária.

Tratando-se de um filme mudo sobre uma trama psicológica é um extraordinário feito narrativo. O seu autor considerava-o a sua melhor obra, que comparava a uma tragédia grega. No final, vemos o ganancioso McTeague, sem cavalo, sem água, algemado sub-repticiamente pelo moribundo Schouler, o rival amoroso que o perseguira e o tinha vindo prender e que ele tinha vencido em combate. A ganância de McTeague, a inveja de Schouler e a estupidez de ambos serão mortais. Embora não conste na Bíblia, ganância é um dos sete pecados mortais, também conhecidos como capitais, que também é referida pela palavra avareza.

Todavia, ganância não se aplica apenas a dinheiro. É um desejo egoísta e excessivo por mais de alguma coisa do que se necessita. É um desejo insaciável de ganho material – dinheiro, terra, arte, comida – ou de posição social, tal como status ou poder.

Desde que há memória, a ganância tem sido considerada como indesejável por ser causadora de conflitos entre comportamentos e objetivos sociais. Além disso, poderá estar na origem de comportamentos e hábitos que podem ser considerados imorais. Por isso, a sua classificação pela Igreja como pecado mortal.

O poeta romano Lucretius (sec. 1 AC) considerava que o medo da morte e da pobreza estavam na origem da ganância: “E a ganância, outra vez, o desejo cego por honras / que força pobres miseráveis para além das fronteiras da lei / e muitas vezes se alia e administra o crime…”.

John Stuart Mill escreveu em “Utilitarianism” que o amor ao dinheiro é não só uma das mais poderosas forças que fazem mover a vida humana (outro filme “Cabaret”, 1972, de Bob Fosse: “money makes the world go around…”) mas que em muitos casos o desejo de o possuir é mais forte que o desejo de o utilizar, até que a acumulação de dinheiro é desejada, não para ser usada num fim, mas é ela mesmo o fim. De ser um meio para alcançar a felicidade tornou-se o principal ingrediente da conceção de felicidade do indivíduo.

Ganância e estupidez estão muitas vezes ligadas, como ilustra o exemplo de “Greed”. Os exemplos de ganância que nos últimos anos têm marcado a nossa existência são imensos e de todos conhecidos.

Em alguns casos, os gananciosos safam-se porque ou não são estúpidos ou porque tiveram sorte. Noutros casos, têm problemas com a justiça, por vezes passam pelo aviltamento social de noites na Judiciária ou temporadas na prisão, uma maçada e um inconveniente, mas alguns até conseguem não ir para o calabouço graças a um benévolo código penal e uma justiça hiper lenta (nos EUA dizem “justice delayed is justice denied”). Só os verdadeiramente azarados ou estúpidos (e os pobres) é que irão expiar a ganância na prisão. O “caso Bugatti” dos últimos dias, a ser verdade, será verdadeiramente espantoso de cupidez e estupidez.

Muitos casos recentes espelham este binómio. Por exemplo, na procura de fama ou honras (status): meter-se num frágil submersível para o ver o Titanic por uma minúscula janela sabendo-se que a maioria dos especialistas tinha avisado que não era seguro. Resultou em morte e fama póstuma.

Outro exemplo, ganância de poder: decidir sozinho, sem especialidade, a localização do putativo novo aeroporto de Lisboa, um assunto muito complexo e cuja decisão não pode ser tomada em cima do joelho. Resultado: cuidado com este homem. Outro exemplo de ganância de holofote: propor uma lei da habitação cujo resultado todos os especialistas avisam não vai promover mais habitação. Resultado: cuidado com esta mulher.

Em 1992, James Carville que era o estratega da campanha eleitoral de Bill Clinton escreveu num quadro para consumo interno da campanha três frases estratégicas que deveriam orientar toda a campanha. Uma delas saiu da sede da campanha e tornou-se célebre: “The economy, stupid”. Carville num programa de TV acrescentou-lhe um “it’s” e ficou conhecida por “It’s the economy, stupid”. A palavra estúpido tinha aqui um sentido não ofensivo, querendo significar, “está-se mesmo a ver que a economia é o principal problema”.

Mas estúpido e estupidez agora estão agora a ser utilizadas para ofender. Nos últimos meses tenho verificado na imprensa internacional de qualidade a presença cada vez mais assídua dessas palavras. Ainda ontem o venerável Martin Wolf no “Financial Times” referiu-se à necessidade de entendimento entre a China e os EUA para não cometerem a estupidez de acabarem com a vida na Terra.

A estupidez pode ser coletiva e pode resultar de aceitação voluntária. No livro “Bioliderança, porque seguimos quem seguimos?”, Paulo Finuras pergunta sobre o que haverá de errado com os sistemas políticos que criámos e que produzem falhanços tão grandes nas lideranças que temos. Enquanto na maioria das dimensões sociais fizemos grandes progressos (técnicos e tecnológicos), no capítulo dos sistemas políticos progredimos muito pouco.

Basicamente, continuamos com as mesmas preocupações na escolha (errada) de líderes que influenciam a vida de milhões de pessoas, como já o fazíamos na Grécia e Roma antigas. Não conseguiremos escolher melhores líderes, em vez de psicopatas, vigaristas, facínoras, narcisistas grandiosos, maquiavélicos, rufias e afins, pergunta Finuras.

E, mesmo a propósito deste desabafo, enquanto escrevia este artigo, leio a notícia que Trump recebeu uma carta do procurador Jack Smith a informá-lo de que é alvo da investigação sobre a invasão do Capitólio a 6 de janeiro. O próximo é a acusação. Como provavelmente comentaria Lucretius se hoje fosse vivo, a ganância de poder e estupidez de Trump esbarraram no poder do Estado de direito.