“Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém”
Jorge Palma
(O tradicional disclaimer: na data em que escrevo estas linhas, não se sabe ainda o resultado de Portugal. Obviamente que, gostando de futebol, quero que a nossa selecção passe. Contudo, procuro não confundir o acessório com o essencial. Portugal é muito mais do que uma sucessão de jogos de futebol e, enquanto duram os 90 minutos, sucedem-se despedimentos de quem não ganha milhões para correr atrás de uma bola.)
Aproveito este novo ciclo de colaboração no JE, cuja história é também um símbolo de resistência, para relembrar que, muitas vezes, é nos momentos mais difíceis que alcançamos a verdadeira natureza das pessoas.
Enquanto nos alienamos, em especial no futebol, escolhendo clubes como lados da trincheira e ofendendo e ameaçando aqueles que ousam gostar ou defender algo diferente, anunciam-se milhares de despedimentos. Anestesiados por dramas diários, desaprendemos a capacidade de empatia com o que se passa na vida real e jogamos as fichas todas em algo que não muda a vida de ninguém.
Se como sportinguista me habituei a ver a fúria dos adeptos, seja de que clube forem, perante opiniões das quais discordam, como advogada sou espectadora assídua da indiferença com os cidadãos contemplam dramas humanos, ainda que anunciados nos mesmos meios de comunicação social. Um golo – ou a ausência deles – gera milhares de comentários. Um despedimento colectivo, ainda que de centenas de pessoas, muitas vezes não merece qualquer reacção, quando não mesmo é objecto de comentários favoráveis porque, alegadamente, quem os produz considera estar a pagar algo conexo às ditas relações de trabalho. Nunca percebi o que leva cidadãos a celebrarem despedimentos de outros, da mesma forma que nunca entendi a impassividade daqueles que usam as redes sociais para disparar o ódio quando o assunto é o desporto. Ver anúncios de saídas, seja na Galp, na TAP, no Santander, no BCP, na Altice ou noutra qualquer empresa que já foi um símbolo de um emprego para a vida, causa-me tanta apreensão quanto o ensurdecedor silêncio que aqueles geram.
Valerá a pena pensar quando é que nos tornámos tão frios, egoístas e hedonistas, ao ponto de apenas pensarmos no nosso concreto quintal. No nosso posto de trabalho. No nosso extracto bancário. Na nossa casa. No nosso clube.
Um dos meus músicos e compositores preferidos prometeu que, enquanto houvesse ventos e mares, existiria sempre quem não parasse. Nos tempos que correm, mais do que não parar, o que importa é saber resistir. De preferência, de pé. Zapata um dia terá dito que a morte era preferível à escravidão. Eu permito-me acrescentar que, enquanto houver estrada para andar, podemos ser uma minoria, mas há quem continue a lutar para que se possa viver livremente. A lutar, entre outros, por um direito do trabalho mais digno mas, também, por um direito ao trabalho onde todos caibam, excepto, talvez, os que se comprazem com a desgraça alheia e vão para a Plaza Mayor celebrar nem se percebe o quê.
Esta devia ser a nossa preocupação.
Golos? Haverá sempre quem os marque e, como se viu, um dia é o dia da caça, e este ano foi o do Leão.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia