António Costa conseguiu um feito extraordinário, algo em vias de extinção: uma maioria absoluta. É raríssimo actualmente nas democracias ocidentais isso ser alcançado e é o sonho de qualquer líder de um partido de poder, quando a “lei que vigora” são governos cada vez mais pulverizados, com amplas coligações.

Mas, em dez meses, a solidez monumental de uma vitória ampla nas urnas tornou-se uma singela e frágil peça de cristal a quebrar-se por todos os lados, tudo fruto de uma fragmentação interna de um Governo construído para agradar ao aparelho.

Marcelo Rebelo de Sousa percebeu isso na primeira declaração, quando afirmou que a arma atómica não é para ser usada todos os anos, bem como no discurso de Ano Novo, em que utilizou a expressão “só ele” (o Governo) tinha a responsabilidade da manutenção da estabilidade política.

O Presidente da República sabe melhor do que ninguém que se suscitasse a dissolução do Parlamento isso poderia voltar-se contra ele e explodir-lhe na cara.

Primeiro, porque o PS tem uma maioria sólida e robusta, logo, não faz sentido fazer cair um Executivo com dez meses de vida; segundo, e mais importante, tem o apurado instinto político de conhecer muito bem a sua família política e reconhecer que uma coisa é o PSD estar sempre preparado para tomar as rédeas do poder, outra, é o seu líder actual ter notoriedade (que não tem) e capacidade de encabeçar um novo projecto, que dê garantias que nas urnas possa alterar o ciclo político.

Ora, nestas circunstâncias, uma chamada às urnas antecipada seria um risco de criação de uma situação de ingovernabilidade que ninguém deseja.

Marcelo Rebelo de Sousa só tomará essa decisão difícil no caso de um evidente apodrecimento da maioria PS, que seja irrevogável e sem retorno, sendo que o pior inimigo do Governo é o próprio Governo, como comentei na CNN.

Tudo dependerá de António Costa, das escolhas que fez e de não ter aproveitado o momento para fazer uma ampla remodelação, promovendo apenas dois secretários de Estado, a par do aproveitamento eficaz e racional da torneira de fundos europeus. Sem esquecer que não podem voltar a acontecer espectáculos pornográficos como os acontecidos com Alexandra Reis, pois isso mata por completo a química de confiança entre os portugueses e a classe política, nomeadamente com o Governo que a nomeou.

Para além disso, António Costa tem um motim dentro do PS da parte do grupo de Pedro Nuno Santos, que andará por aí a preparar o seu futuro, e que exigia também a cabeça de Fernando Medina numa bandeja. Com tudo isto, é cada vez mais visível que a solução da Geringonça dava muito jeito. A articulação e negociação quase diária que implicava essa ligação ao PCP e BE aguçava o engenho e a coordenação política do Governo, algo que, visivelmente, colapsou.

António Costa é agora, e mais uma vez, o único trunfo que sobra ao Governo. A dúvida é se a luta pela sucessão no PS o asfixia e se sente a energia para encontrar o antídoto contra o castelo de cartas em que se tornou o Governo. A verdade é que está numa encruzilhada e o Presidente da República mais vigilante do que nunca.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.