Enquanto grande parte dos países ocidentais estava a banhos, a autoproclamada nação bastião da democracia atirava à sua sorte milhares de pessoas afegãs, num caldo cultural, bélico, religioso, retrógrado e estruturalmente misógino.

Precisei de quatro décadas, mas a desilusão com os Estados Unidos da América instalou-se e é absoluta. Nunca o “America first” me causou tanto repúdio. Nunca o discurso da “guerra pela democracia” me atormentou tão visceralmente.

Se há 20 anos talvez o único motivo válido para a invasão não solicitada pelos cidadãos afegãos fosse a proteção e defesa dos direitos das mulheres e meninas, cidadãs enclausuradas – literalmente – por determinação exclusivamente masculina, este deveria ser agora também o principal motivo para que a debandada norte-americana fosse pensada, amplamente discutida, e preparada. Tendo em conta a proteção destes milhares de pessoas que, em suma, perderam, da noite para o dia, garantias de segurança e liberdade.

E não falamos apenas de vestes que tapam a existência das mulheres afegãs. Não. Falamos também do medo diário, da luta silenciosa pela vida – delas e de suas filhas.

E não nos diga, Mr. Biden, que não tinham informações dos atos cruéis que os Talibãs já vinham infligindo sobre as mulheres de terras mais rurais que as tropas ocidentais nem pensam existir.

A morte de mulheres e crianças afegãs aumentou significativamente desde o anúncio das “negociações” entre terroristas e os Estados Unidos da América. Foram elas as primeiras sacrificadas. São elas que estão novamente presas a uma vigência machista, violenta, retrógrada que se exibe pela supremacia do homem sobre a ação (totalmente coartada) da mulher.

Estes alertas tinham sido repetidamente dados pelas Nações Unidas, através da UM Women, contudo, caídas em surdina, negligenciadas e, porventura, consideradas irrelevantes pelas lideranças militares presentes no terreno.

Assim, Uncle Sam, shame on you! É incompreensível que exiba com gáudio a imagem do último soldado americano a sair de solo afegão, mas que, em momento algum, mostre estar atento aos milhares de inocentes entregues a seres humanos que só conhecem a lei da violência.

Não, Mr. Biden, o que fez não tem perdão! Porque o que decidiu foi pelos e com os seus. Tal como o seu antecessor. E todos os outros. Fique ciente de que as mortes de tantas e tantas mulheres e crianças afegãs marcarão a história da sua vida e deixarão um marco ensombrado no seu currículo presidencial.

Tudo isto é tão mais cruel quando todas as esperanças do mundo democrático foram entregues a si, após o cataclismo que foi a vigência Trump. Que desilusão, Mr. Biden!