A propósito da sociedade de consumo e de consumidores em Portugal

Quando fui convidado para escrever um ensaio sobre a sociedade de consumo e o que esta representa em medidas de política e associativismo em Portugal, prontamente aceitei o desafio, pareceu-me uma excelente oportunidade para fazer a filtragem dos diferentes itinerários da chamada civilização do mercado e como esta, sem apelo nem agravo, está sujeita em enveredar por novos trilhos, tal o débito da imensidão de formas poluidoras e hecatombes em todos os ecossistemas, o que exige novas formas de atuação a nível da cidadania, dos comportamentos empresariais e da redefinição do papel do Estado.

 

 

Continuo a pensar que não é possível compreender o consumidor sem primeiramente nos interessarmos pelo indivíduo (e este em articulação com o interesse público, recordo que o lendário Ralph Nader despontou e afirmou-se dentro desta equação).

Durante décadas, andámos absorvidos com a ladainha dos direitos do consumidor, tomando este como uma espécie de tubo digestivo ambulante, formatado como um disco rígido de direitos, esquecendo um dado elementar: o consumidor não tem existência própria, é um estatuto como outro qualquer. Só quando nos interessamos pelo indivíduo é que o consumo é entendível pela multiplicidade das transformações que ocorreram e ocorrem nos nossos sistemas de valores, mentalidades, aspirações e opiniões.

Por isso, delineei o meu ensaio focando-me nos fundamentos da sociedade de consumo, emergente num dado momento da industrialização e no lugar e no espaço do que denominamos por civilização ocidental; e, após analisar as sucessivas etapas dessa itinerância, havia que pôr em cena as primícias de uma sociedade de consumo à portuguesa, arrastando-a até aos dias de hoje, num cenário de dependência daquilo que as instituições europeias têm vido a modelizar com a designação de defesa do consumidor (e entre nós pachorrentamente aceite).

Tendo-se tornado óbvio, já em meados dos anos de 1970, que os incitamentos ao consumo tinham vindo a introduzir ameaças ambientais que muito cedo adquiriram a dimensão de globais, tudo parecia legitimar a formação de novas iniciativas de interesse público para contrariar o que na linguagem da época se chamava a defesa do ambiente e nos dias de hoje é um arco de enorme dimensão a que chamamos sustentabilidade.

Se é verdade que somos uma sociedade de e em consumo, e este é a atividade mais espetacular ao cimo da Terra, há que encontrar uma linha condutora de onde vimos e como, numa grande coligação, temos de conjugar esforços para pôr em prática um modelo de modos de produção e consumo sustentáveis, no mais curto espaço de tempo. Porque o espectro do apocalipse deixou de ser o papão de moralistas, evangelistas ou ecologistas radicais – a grande farra do consumo exige que se estenda a mesa com vitualhas no ensinamento dos limites, encontrando respostas para os lixos, desperdícios, recuperação de matérias-primas e até a proibição daquela globalização negativa em que os países neocoloniais vão pilhar os recursos dos países tecnologicamente menos avançados.

A chegada da Fada Aurora

Data de 1980 o livro “A Terceira Vaga”, de Alvin Toffler, que deu justificadamente brado. Três vagas, três saltos tecnológicos, uma galopada desde os tempos do arado até ao chalé eletrónico, que ele profetizava. Uma visão brilhante, diga-se de passagem.

Milénios a lançar a semente à terra e a colher, o Homem simultaneamente produtor e consumidor, sujeito a normas estatutárias, ganhando identidade na alimentação ou no vestuário ou nos lazeres, isto é, formando patrimónios, que ainda hoje nos leva a distinguir uns dos outros; a arrancada da industrialização, a concomitante intensidade das trocas comerciais, a máquina a vapor, o carvão, o gás, a eletricidade, a concentração urbana, a burguesia empreendedora, a classe operária, a passagem de uma conceção de família como unidade de produção para unidade de consumo, a lenta separação do produtor do consumidor.

E com a consolidação do processo industrial deu-se o fenómeno porventura mais relevante da viagem, o gradual alargamento das classes médias, ainda hoje o pilar indispensável das democracias liberais.

E sempre a acompanhar de perto Alvin Toffler, a grande corrida de transformações: os transportes cada vez mais velozes, a base da prosperidade do comércio internacional, as descobertas científicas, a começar por aquelas que tiveram impacto direto no domínio da saúde – o tratamento para a sífilis e para a tuberculose, os antibióticos, os barbitúricos, as vacinas que debelaram, por exemplo, a poliomielite; a química, indispensável para preparar o ambiente para o fabrico em série (plásticos, detergentes, produtos de higiene, os inevitáveis medicamentos); a aceleração das comunicações, passou-se do telégrafo para formas quase instantâneas de comunicação.

Enfim, estava criado um grande auditório onde não faltava a imprensa escrita e a rádio e deu-se um outro salto fundamental, a linha de montagem e o taylorismo – o consumo de massas estava pronto para ser servido, foi vivendo uma frase experimental, emergiu nas potências mais prósperas ainda num quadro de grandes assimetrias, superou a crise de 1929 e transpôs definitivamente a barreira no termo da Segunda Guerra Mundial.

Nada de ilusões, a sociedade de consumo é uma questão ideológica, lembrem-se de Nixon a discutir com Khrushchov quem iria mais longe, qual a superpotência que iria dar mais regalias aos seus cidadãos.

Isto para dizer que o consumo é a vitrina de um projeto de sociedade, opôs o mundo ocidental aos soviéticos; estes baseavam-se na narrativa das necessidades básicas satisfeitas (trabalho, habitação, saúde, educação para todos) e o Ocidente punha o acento tónico na livre escolha, no crescimento do parque habitacional, na segurança social e no bem-estar familiar – consumo, democratização, segurança na velhice.

Mas mesmo dentro do Ocidente não se fizeram esperar as críticas, muitas delas bem ásperas: estávamos a organizar uma civilização do descartável, e mesmo à custa de novas aventuras coloniais, que os EUA não eram de facto um paraíso com milhões de desgraçados triturados pelas reconversões industriais e a morrer à porta dos hospitais, sem direito a cuidados, ergueram-se vozes como as de Ivan Illich, Herberto Marcuse, André Gorz, Gui Deborde, a lista é enorme.

Mais tarde, um sociólogo francês que chegou a deputado do Parlamento Europeu, Robert Rochefort, observou num livro de 1995, “La Société des Consommateurs”: “A sociedade de consumo continua a ter sucesso por três razões.

Primeiro, assegura, melhor do que qualquer outra forma de organização socioeconómico-cultural até hoje posta em prática, o acesso de um grande número de pessoas a níveis de vida e de conforto sempre em progressão, mesmo com evidentes disparidades sociais.

Segundo, valoriza a livre escolha individual, que é tida como direito inalienável, e um referente democrático inabalável.

Terceiro, a sociedade de consumo, ao contrário de outros sistemas que com ela tentaram concorrer, é de um total pragmatismo, pois não só neutraliza as críticas que lhe são apontadas como faz delas alavancas para se reformular e desenvolver.”

Foi neste contexto que se fermentou a política dos consumidores. Houve acidentes com medicamentos e cosméticos; impunham-se regras para a segurança rodoviária; havia que estudar os aditivos alimentares; evitar especulações com os preços da habitação; abolir cláusulas contratuais abusivas; impor regras à publicidade; e deu-se um fenómeno social bem curioso, passaram a interessar-se pelas grandes questões da sociedade de consumo organizações femininas e de família, cooperativas, sindicatos, clubes de cultura, os partidos políticos iam produzindo estudos sobre as matérias do consumo, sugerindo retificações, isto dentro de um despique ideológico onde os principais protagonistas foram os sociais-democratas, os liberais e os cristãos-democratas a nível europeu, tal como o consumo provocou tensões nos EUA entre os democratas e os republicanos.

John Kennedy deu o mote com a sua mensagem ao Congresso, em 15 de março de 1962, iniciando o seu discurso com uma frase que é hoje lendária: “Consumidores, por definição, somos todos nós”. E enunciava um conjunto de medidas que se prendiam essencialmente com os imperativos da informação e formação; a segurança a diferentes níveis, não descurando os direitos económicos, entre outras propostas.

E fiquemos por aqui, nascera o consumidor, desenvolveu-se o movimento associativo, o próprio Estado passou a intervir, disfunções que houvesse no funcionamento do mercado, saldar-se-iam sempre em graves prejuízos económicos e, quiçá, em perdas eleitorais.

O ilogismo na linha do mercado: da produção/natureza, do mercado ao consumo

Na década de 1970, a economia dos serviços ultrapassou o setor industrial, da nossa parte passámos do Estado Novo para uma democracia e o sonho de consumir mais foi preocupação dominante. Entrámos com um atraso de vinte anos na sociedade de consumo e esta, nos países mais prósperos, mudava de perfil e de natureza.

Enquanto se impunha a era do individualismo, descobria-se o papel fulcral do ambiente: resíduos, reciclagem, reutilização, empresas verdes, rasgões na camada de ozono, chuvas ácidas, não se podia esconder a devastação e a gravidade dos riscos da degradação contínua do ambiente a nível mundial.

E cimentaram-se tomadas de posição que persistem até hoje: os ambientalistas reclamam mais cuidados com a Natureza, legislação severa em múltiplos domínios, desde a circulação pelos oceanos dos porta-contentores, à eliminação de substâncias perigosas, à proteção de modos de produção agrícola sustentáveis; os consumidores, cada vez mais debaixo do chapéu de chuva da chamada defesa do consumidor, medem a sua ação exclusivamente do mercado ao consumo – são, portanto, dois tipos de ativismo feitos praticamente de costas voltadas. E isto ao arrepio de alguns documentos de valor universal, como a Agenda 21, onde se fala claramente em modos de produção e consumo mais sustentáveis.

A União Europeia e a sua antecessora promoveram até há pouco tempo a defesa do consumidor técnica, queria-se que o consumidor fosse um agente esclarecido do mercado interno europeu, devia participar em matérias propostas pela Comissão e pelo Parlamento Europeu, os outros assuntos eram pura fantasia, não mereciam cobertura.

Por isso concluo o meu ensaio dando como imperativo o retorno a uma política de consumidores ampla e participada, motivada pelo bem comum e muito menos por ensaios comparativos e denúncias bombásticas, em estreita conivência com ambientalistas, de modo que os consumidores sintam que estão a atuar com eficiência e eficácia na sustentabilidade. Aliás, faço depender o futuro da política de consumidores deste grande encontro com os modos de produção e consumo ambientalmente viáveis.

Um grande desafio para o consumo e ambiente: o que fazer do lixo, reciclar, recuperar, economia circular, aterro?

Mário Beja Santos assina este texto no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), na qualidade de autor de “Sociedade de Consumo e Consumidores em Portugal”, editado pela FFMS.