Passa agora um ano sobre a manifestação Unite the Right realizada em Charlottesville, nos Estados Unidos. O evento juntou a extrema-direita americana, os racistas e os saudosistas da Confederação e foi marcado pela morte de uma activista anti-racismo. Essa foi a hora definidora do Partido Republicano face a Trump: aceitou os eventos e a resposta. O sistema político contemporizou com extremistas, integrou-os no seu quotidiano e abriu portas à sua normalização.
Recordemos os factos. As forças policiais protegiam os manifestantes de extrema-direita da contra-manifestação de activistas. Se provocados pelos nazis, os polícias não reagiam, com uma complacência atípica. Um dos nazis americanos atropelou dezenas de activistas, feriu 19, assassinou uma mulher. Trump condenou a alegada violência dos dois lados, repetiu que havia pessoas boas em ambos os lados, fazendo equivaler organizações racistas, cujos membros advogam tudo o que é contrário à democracia, à tolerância e à inclusão (e que acabavam de assassinar uma mulher) e activistas que os denunciam e combatem de modo pacífico.
Na imprensa e nas redes sociais, o coro de vozes indignadas com o evento e com a reacção oficial da Casa Branca levaram a um recuo tímido. Mas não houve consequências, nem alteração de programa. Para os republicanos, era possível viver com este presidente, desde que o Obamacare caísse, os cortes nos impostos dos ricos avançassem e a composição do Supremo Tribunal fosse alterada de forma radical.
A repetição da manifestação da extrema-direita, este ano em Washington, juntou menos de 40 pessoas e milhares de contra-manifestantes. Mas Trump já institucionalizou um apelo ao nativismo e um discurso de medo e de ódio contra os novos imigrantes. A separação traumática de famílias migrantes, o encarceramento de crianças junto da fronteira e a multiplicação de incidentes entre civis que se sentem à-vontade para atacar minorias étnicas mostra que estas forças não precisam de tomar as ruas para fazer aplicar a sua agenda.
Sempre houve tensão étnica na América. Mas a vitória do movimento dos direitos civis tornou-a contida, ilegítima, condenada. O problema de ter ao comando da superpotência um homem como Trump é que o normal mudou de lugar. O extremista é agora admissível; o que era humano, educado, corrente passou a chamar-se ‘ditadura do politicamente correcto’. Legitimada como ideologia oficial, normalizada, é aplicada por qualquer cidadão que a perfilhe, não precisa de mandante oficial.
Do lado de cá do Atlântico, há muito tempo que forças fascizantes europeias exploram as contradições dos sistemas políticos liberais e as desigualdades sociais e económicas, agitam temas securitários, lançam o descrédito sobre as instituições e imputam responsabilidades pelas situações a grupos humanos mais frágeis (imigrantes, refugiados, minorias étnicas e religiosas).
Eleição após eleição, o seu discurso contaminou o resto do espectro político, alterou o foco do debate e das prioridades políticas. Com eficácia, viram algumas das suas agendas tomar espaço nos programas de candidatos e partidos de direita moderada, que apanharam a boleia do populismo em vez de abordarem as causas reais dos problemas.
Onde a tradição política democrática era mais recente e mais frágil, estas forças avançaram rapidamente, tornaram-se governo. Mas mesmo onde ainda não conseguiram, estão implantadas em parlamentos e condicionam as políticas para refugiados, imigração e integração europeia.
O caso paradigmático de Marine le Pen, que é mestre na matização do discurso e ocultação dos aspectos mais gravosos da sua ideologia, revela bem a eficácia do processo de grande normalização política da extrema-direita europeia. O recente convite que a Web Summit lhe fez (e entretanto retirou) é um sinal grave desse processo.
Não surpreende que Steve Bannon se empenhe na criação de uma organização internacional para articular os grupos e partidos de extrema-direita na Europa. Ele sabe que um crescimento destas forças no Parlamento Europeu acentuaria as divisões internas e poderia dar o golpe que o Brexit não gerou.
Mas a criação de uma internacional fascista e a desagregação da União Europeia não são fins em si mesmos. O elo mais fraco são os Estados individuais, cuja democracia, segurança e progresso económico e social dependem, mais do que alguns admitem, da integração mútua que, até ao impacto perverso do euro, tem sido o melhor antídoto à pobreza, à demagogia e à tentação autoritária que quase sempre as segue. As próximas eleições europeias podem bem ser o momento definidor do futuro europeu.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.