Se é credor hipotecário ou parte interessada na venda judicial de imóvel hipotecado e que tenha sido posteriormente arrendado para habitação, a recente decisão uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é bem capaz de ser do seu interesse.

Tudo começa em 27.11.2018, data em que o STJ proferiu Acórdão no qual decidiu que o contrato de arrendamento celebrado depois do registo da hipoteca não caduca com a venda judicial do imóvel locado, havendo-se antes como transmitida a posição do locador para o terceiro adquirente do imóvel assim alienado.

Esta decisão surgiu em sentido contrário à orientação que até aí a jurisprudência vinha adotando, ou seja, no sentido de, no contexto acima referido, julgar verificada a caducidade do contrato de arrendamento.

Todavia, como a lei não dá uma resposta expressa e inequívoca a esta questão quando estão em causa contratos de arrendamento, abriu-se a porta para o STJ, através do mencionado Acórdão, sustentar posição divergente quanto ao que até aí vinha sendo pacificamente decidido por este Tribunal.

Pois bem, tal divergência jurisprudencial do STJ conduziu agora à prolação de uma decisão uniformizadora (Acórdão nº 2/2021, de 5.07.2021 – Diário da República, 1ª série, de 5.08.2021), no seguinte sentido: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109º, nº 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824º do CCivil”.

Ou seja, simplificando, na venda judicial, no caso em processo de insolvência do locador, a hipoteca cede em relação ao arrendamento mesmo que posterior ao registo da hipoteca e, em consequência, o imóvel não é transmitido livre do arrendamento que o onera.

Tratou-se de uma decisão que esteve longe de ser consensual, tendo 15 Juízes Conselheiros votado a favor e 14 contra, o que expressa bem a acentuada divisão e elevada controvérsia que se instalou no STJ quanto ao tema em causa.

E não é para menos, pois esta decisão ao desatender à aplicação da conhecida norma do Código Civil (art. 824º, nº 2) que determina que na venda judicial os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, é suscetível de vir a fragilizar a confiança, segurança e robustez jurídica da hipoteca como garantia do credor em confronto, neste caso, com contratos de arrendamento ainda que posteriores ao registo da hipoteca.

Esta decisão uniformizadora, tal como se encontra assinalado nas razões que constam dos votos de vencido lavrados, impressiona pela natureza formal dos argumentos em que baseia a sua fundamentação e pelas considerações e presunções de aderência duvidosa quanto à realidade sobre a qual se está a intervir.

De particular nota, a tese que teve vencimento no STJ considera que não se pode defender que o arrendamento, em razão das alterações legislativas que, entretanto, o seu regime jurídico tem vindo a sofrer, implica uma desvalorização do bem, onerando-o economicamente, nem que frustre e/ou diminua a posição do credor (hipotecário) reclamante! É uma consideração, dir-se-á, no mínimo, arriscada.

Enfim, tudo isto fragiliza a autoridade e força persuasiva que uma decisão de uniformização do STJ deveria ter, sobretudo ao intervir num domínio tão sensível e com esta relevância económica e social.

Receamos que os efeitos desta decisão uniformizadora, em mercados como o do crédito imobiliário ou o das transações de carteiras de Non-Performing Loans (NPL), não tardem a fazer-se sentir e sejam significativos, pois a partir de agora há um risco acrescido para os credores hipotecários e não será necessário um exercício muito especulativo para antecipar quem, por exemplo no caso do crédito imobiliário, o irá suportar.

Impõe-se, cremos, uma alteração legislativa para clarificar este tema e para que a hipoteca (e a venda judicial) volte a ser aquilo que era.