O tempo histórico explica muito do que vivemos na atualidade. É essa a sua principal função: explicar, ajudar a compreender e não justificar ou tornar ético a atitude deste ou daquele estado, deste ou daquele povo ou indivíduo. Há uma diferença enorme entre explicar e justificar, entre analisar e comentar, entre investigar e defender o objeto de estudo.

Nos tempos a preto e branco, em que as tonalidades de cinzento tendem a esbater-se, é comum instalar-se a confusão. Faz, então, falta voltar à história, ao começo de tudo, à raiz do problema. Voltar à história não tem de ser obrigatoriamente pegar num ensaio histórico ou numa investigação histórica, embora em muitos dos casos, também valha a pena.

Podemos voltar ao tempo histórico através de uma obra de arte, uma pintura, uma escultura, um romance, um poema, uma composição musical, um conto tradicional e aí beber o ambiente de uma época de um contexto de estórias que fizeram parte da história e a construíram. A história pode, por isso, ser incómoda, desagradável aos olhos de muitos ou desafiar os conceitos contemporâneos. Pode ainda ser reescrita e refletir ou construir uma perspetiva que parece plasmar o olhar contemporâneo de alguns sobre o passado.

Para pensar o mundo contemporâneo e as atuais convulsões, sobretudo, na Ordem Internacional, mas também as graves turbulências vividas por diversas sociedades, resolvi revisitar o século XIX para pensar esse mundo.

É o século XIX que traz a expansão da mecanização da produção, a independência entre novos países, em que a hegemonia das potências europeias se globaliza, ultrapassando outros poderes, como por exemplo, a China que detinha até 1820 tinha o maior PIB mundial, com cerca de um terço do valor global. É igualmente nesse período que a alteridade se implanta no pensamento dos novos líderes do mundo. É o século que funda o mundo que agora parece estar em convulsão.

Nessa viagem li três obras, duas escritas no século XIX, outra lida no século XXI, mas em que a narrativa se situa neste século. Viajaremos pelo Brasil, Cabo Verde e Portugal, num triângulo no Atlântico Sul que nos impele para uma partilha linguística é certo, mas também histórica.

O encontro com o outro

O romance “Siríaco e Mister Charles”, da autoria de Joaquim Arena, editado pela Quetzal e nomeado para os Prémios Pen 2023, é o primeiro pelo qual iremos viajar no tempo. Sendo uma ficção e o seu autor contemporâneo, “Siríaco e Mister Charles” passa-se em 1832. Contudo, podemos acompanhar vários episódios da vida da sua personagem central, Siríaco, antigo escravo, alforriado que, ao passar por Santiago, em Cabo Verde, por ali decide ficar.

Através de analepses, uma técnica que permite introduzir ações do passado no contexto do presente da narrativa, o autor dá-nos a conhecer o mundo de Siríaco, percorrendo a transição do século XVIII para o século XIX. Este caminho é feito por entre aventuras e desventuras que incluem encontro com um jovem cientista europeu, Charles Darwin. Desta convergência nasce um relacionamento que, embora pautado pela alteridade se transforma numa amizade.

Este livro traz, assim, o relato de algo profundamente desvalorizado: o papel das pessoas que, nos espaços colonizados, permitiram que fosse obtido o conhecimento sobre aquelas terras. Geralmente, contratados como guias, prestavam informações preciosas não só para a sobrevivência, mas também para o conhecimento da flora e fauna locais, dos acidentes geográficos e mesmo da cura tradicional para algumas maleitas.

Joaquim Arena oferece ao leitor uma estória em que ficção e história se encontram, esteticamente muito aprazível e organizada em capítulos pequenos que permitem o gosto da leitura num formato para saborear cada momento. Mas também nos presenteia com uma perspetiva alternativa das relações e dos factos históricos, altamente relevantes para a construção da memória coletiva.

O Brasil ainda colonial

Deslocamo-nos, agora, até ao Brasil, com Aluísio Azevedo, autor literário e diplomata brasileiro, que escreve “O Mulato”, em 1881. Este livro foi editado pela primeira vez para o mercado português pela Guerra e Paz, em agosto deste ano. Parece estranho que fossem necessários mais de cento e trinta anos para o público português ter uma edição local, mas afinal Portugal e o Brasil, muitas vezes, ainda são desconhecidos.

Aluísio Azevedo descreve com minúcia os espaços, as personagens, os seus hábitos, mas também as suas conversas e interações. Através deste romance viajamos no tempo e no espaço. Chegamos ao Maranhão conservador, em que o futuro das jovens moças é casar, o das mulheres mais velhas mandar na casa e, sobretudo, nos escravos ou antigos escravos (a abolição da escravatura no Brasil só se deu seis anos após a publicação do romance) e a serem boas cristãs.

Aos homens estava reservada toda a esfera de ação pública: os negócios, a política, a condução da religião, a diversão, o estudo e ciência. Aos recentemente imigrados, caixeiros e com outras profissões, procurando escapar à pobreza do seu país, a busca de meios de ascensão social. Às pessoas escravizadas nada estava reservado, nem a ambição de trabalhando bem, conseguir sair da sua condição de subordinação absoluta.

É um Brasil profundamente temente a Deus que Aluísio Azevedo descreve criticamente. Um país profundamente escravocrata e racista que ainda discriminava os mulatos ou pardos na sua ascensão social. Uma terra em que todos se moviam pelos seus interesses mais imediatos e o clero cedia a comportamentos que condenava.

Azevedo concede ao leitor uma visão da sociedade brasileira, num romance de fácil leitura, enriquecido por descrições contundentes daquele Estado independente na política e com uma sociedade ainda repleta de traços coloniais.

A descoberta do Oriente

No seu livro, “Jornadas pelo Mundo”, o Conde de Arnoso faz o relato da viagem iniciada em 1887, com destino à China. Editado pela Quetzal, este livro traz-nos a visão de um português que vai contando as suas visões sobre os territórios que vai tocando e as populações com que se vai relacionando. Na bagagem levava a negociação do tratado de posse e administração de Macau que iria ser tratada em Pequim.

A descrição detalhada do que vai encontrando não deixa de ser um olhar ocidental sobre uma realidade pouco conhecida e é com essa perspetiva que o autor faz a sua descrição. Aliás, a ideia inicial seria descrever à sua família esta viagem e assim parecer que diminuía a distância espacial e temporal.

Neste relato bem escrito e organizado, o leitor viaja com o olhar deste autor, detendo-se nos pormenores por si considerados relevantes.  Também nos informa sobre as instituições, o poder ou a religião, sobretudo na China, o destino, mas também o maior objeto descritivo do livro. O autor oferece-nos, pois, uma perspetiva contemporânea sobre a alteridade.

Ontem e hoje, vale a pena usar as belas-letras para visitar tempos outros. Com estes três títulos viajamos no tempo e no espaço, mas também intuímos perspetivas que nos explicam algumas situações atuais. A alteridade e, muitas vezes, a demonização do pouco conhecido continua a marcar as nossas perceções e a ser usada para manipular receios e ameaças.

Ler criticamente estas três obras, ajuda a perceber as clivagens entre os hemisférios sul e norte e a contestação atual na Ordem internacional. Neste sentido, a história pode ensombrar, mas quando a descobrimos também pode mesmo assombrar.