A Conferência de Segurança de Munique (CSM) realizada na cidade que lhe dá o nome, de 14 a 16 fevereiro de 2025, ficará registada na nossa memória coletiva. A maratona de discursos teve o seu ponto alto na intervenção do vice-presidente norte-americano JD Vance, que utilizou aquele fórum para informar o mundo de que o projeto globalista norte-americano tinha terminado e que, consequentemente, as relações dos EUA com a Europa iriam sofrer alterações significativas. Esta ia deixar de poder contar com o apoio ilimitado dos EUA.
O carácter disruptivo do seu discurso assemelha-se ao de Vladimir Putin, em 2007, quando sinalizou o início do fim da Ordem Unipolar nascida no final da Guerra Fria, assim como do projeto hegemónico global que lhe estava associado, travestido de “Ordem Liberal Internacional”, que lhe dava o suporte ideológico. O livro de Fukuyama saiu das estantes e foi ganhar pó para os baús da História.
Se o discurso de Putin representou o desafio a essa Ordem e a esse projeto, o discurso de Vance, já num quadro de multipolaridade assumida, veio pôr fim ao projeto exaurido e fantasioso da primazia global norte-americana, causando um grande incómodo aos neoconservadores e neoliberais dos dois lados do Atlântico. E, por consequência, pondo cobro ao atlanticismo ameaçando as alianças que lhe deram corpo, nascidas no fim da Segunda Guerra Mundial.
Vance veio afirmar que o perigo para a Europa não se encontrava na Rússia nem na China, mas sim no seu interior, na distância entre as promessas feitas pelos dirigentes europeus aos seus cidadãos e a forma como (não) eram concretizadas, na falsidade em que assentam os seus princípios, na debilidade do poder político tanto ao nível europeu como nacional e nas ameaças à democracia, dando como exemplo o cancelamento das eleições na Roménia e os ataques à liberdade de expressão. Lembrou que a Europa é fraca e que não está em sintonia com os interesses e valores americanos.
Houve na sala um esgar de confrontação entre duas posições ideológicas distintas. As palavras de Vance chocaram a audiência e provocaram algumas respostas. Como o peixe fora da água em grande agitação antes de morrer, os atlanticistas e defensores de uma esgotada Ordem Liberal davam um ar da sua graça, como fizeram Pistorius e Kaja Kalas, entre outros, mas de um modo inconsequente.
Ao ser formalizado o fim do Ocidente como uma entidade – aparentemente – unida, escancaram-se as portas para a emergência de uma nova Ordem Internacional, por cima dos escombros da antiga, provavelmente mais difícil e agreste para os europeus, cada vez mais irrelevantes geopoliticamente e marginais na gestão dos assuntos internacionais, agora agravada pelo afastamento dos EUA da segurança europeia. O atlanticismo caminha a passos largos para o fundo da gaveta.
Vance veio mostrar quem manda e qual o caminho que vai ser seguido. Não é que isso seja novo, mas costumava ser feito de modo menos rude e arrogante como aconteceu desta vez. Não me recordo de líderes norte-americanos não cumprimentarem os dirigentes de um país anfitrião, por permanecerem pouco mais tempo em funções e, em contrapartida, encontrarem-se com líderes da oposição.
O golpe desferido numa Europa decadente, a caminhar para a irrelevância estratégica, torna evidente o fim do sonho da Europa se tornar num polo de poder mundial, um “par inter pares”, com que muitos sonharam e nos quais me incluo. A adesão incondicional da Europa aos excessos do modelo neoliberal liderado por Washington contribuiu decisivamente para o seu declínio.
A conversa sobre a Europa como um ator global não passou de um delírio alimentado por muitos académicos, quando era claro que a União Europeia, a entidade política que representava a Europa, já não desempenhava um papel de relevo em matérias globais. Como pode a UE querer ser autónoma e pensar ser um ator global se ante esta emergência reúne em Paris durante uma presidência polaca ao invés de em Bruxelas ou, no máximo, em Varsóvia?
A Ucrânia foi igualmente um tema incontornável na agenda da conferência. A posição dos europeus veio confirmar uma evidência histórica e, de certo modo, dar razão ao presidente Trump. As guerras europeias contribuíram para a diminuição da importância estratégica do continente. Foi assim nas duas Guerras Mundiais, em que a liderança da Ordem passou para potências não europeias. No caso da guerra na Ucrânia, mais uma guerra europeia, a negligência em compreender a História está a produzir resultados dramáticos.
A não participação da Europa no processo negocial em vias de se iniciar evidencia a sua menoridade no relacionamento entre as potências maiores. O topo da pirâmide política europeia sediada em Bruxelas não compreende isto. A sua visão do mundo limita-se a séries curtas, recorrendo à linguagem utilizada pelos economistas. Talvez compreendam agora, tardiamente, que não existem potências normativas, como nos quiseram fazer crer durante décadas.
O alinhamento incondicional da Europa com o projeto neoconservador/neoliberal da Administração Biden demonstrou a sua incapacidade em perceber que o projeto Ucrânia se tratava de um projeto norte-americano sedicioso, de longa data, contra a Rússia, no qual participaram afincadamente algumas potências europeias, na esperança de colher alguns dividendos. A complacência dos europeus ante as revelações do célebre F*** the EU, da autoria de Victoria Nuland, ou We find a way relativamente à destruição do Nordstream, da lavra de Joe Biden, na presença do chanceler Olaf Scholz, contrastam hoje com o escândalo e a raiva face ao pragmatismo geopolítico de Trump e Vance.
Os dirigentes europeus ainda estão com dificuldade em perceber o que está a acontecer. Têm de se adaptar a viver sozinhos, sem a proteção securitária fornecida pelos EUA, num mundo multipolar e numa nova correlação de forças internacionais em que são atores de segunda ordem. No curto prazo, a Europa pode ser confrontada com uma revolução conservadora. As eleições que se avizinham em vários países europeus poderão ser decisivas e comprometer, decisivamente, este projeto europeu onde prosperam os burocratas não eleitos, mas não o desenvolvimento. O PIB agregado da Europa passou de 90% do norte-americano, em 1999, para 75%, em 2024.
Recuperando uma ideia do Coronel Carlos Matos Gomes, um insigne historiador militar, “uma leitura superficial sobre os conflitos do século XX permite concluir que os exércitos europeus são exércitos historicamente derrotados… Foram os EUA e a União Soviética que impuseram a descolonização à Europa através das dinâmicas do Movimento Descolonizador. No século XX quem decidiu a sorte das armas na Europa foram os Estados Unidos, a Ocidente, e a União Soviética, a Leste, que dividiram o continente entre si, em Ialta e Potsdam,” como o voltarão a fazer se for necessário. Nada disto foi tido em consideração pelos altivos burocratas bem instalados na bolha bruxelense.
À semelhança das outras guerras europeias do século XX, também a guerra na Ucrânia está a contribuir para o declínio da Europa. As potências europeias terão de perceber porque deixaram de ser uma prioridade para Washington e que o seu destino vai ser decidido principalmente (se não exclusivamente) pelas grandes potências, China, EUA e Rússia. Afinal, como se estuda nas academias militares e nos cursos de segurança, as alianças são efémeras e funcionam apenas quando existe sobreposição de interesses. Desaparecem ou modificam-se sempre que essa sobreposição deixa de existir. Os europeus pensaram, ingenuamente, que faziam parte da equipa, que integravam o plantel, quando na verdade nunca passaram de apanha-bolas.
Até há pouco tempo, os inefáveis defensores do elo transatlântico combatiam ferozmente quem defendia o reforço da Política Comum de Segurança e Defesa europeia. Colocavam à frente do desenvolvimento de uma Europa forte os interesses norte-americanos. Multiplicavam-se em conferências e reflexões sobre o tema, em que sob a capa de um pretenso debate se fazia propaganda e criavam lealdades, ridicularizando o projeto de autonomia estratégica europeia. Eram, objetivamente, um instrumento de quem em Washington defendia o imperativo de impedir a emergência na Europa de um polo de poder que pudesse rivalizar com o americano.
Os atlanticistas tinham por missão impedir que a Europa alguma vez pertencesse ao universo dos atores que verdadeiramente contam. Dessa forma, traíram a Europa e os europeus. Alguns, têm agora o descaramento de lamentar a fraqueza militar europeia, quando contribuíram conscientemente para o estado em que nos encontramos.