Abstraindo-nos do resultado eleitoral, as segundas legislativas num intervalo inferior a dois anos levam-nos inevitavelmente à discussão sobre a estabilidade da governação em Portugal. Mas se, em vez de um problema, a instabilidade fosse sintoma de um sistema político alinhado com a diversidade da sociedade portuguesa?

Do bipartidarismo à diversidade política: um sistema em transformação

Durante décadas, o PS, o PSD e o CDS dominaram o cenário político nacional. Em 2005, juntos obtiveram cerca de 82% dos votos. Nas últimas décadas, porém, Portugal transformou-se. Partidos novos conquistaram espaço, fragmentando o voto e dando expressão a diferentes correntes ideológicas: de ambientalistas a nacionalistas, de liberais a dissidentes socialistas. Nas eleições legislativas realizadas entre 2015 e 2021, o PS, PSD e CDS conseguiram, em média, próximo de 72% dos votos. Em março de 2024, essa percentagem caiu para 57%, tendo recuado para pouco mais de 55% nas últimas eleições.

Embora esta fragmentação possa gerar uma sensação de ingovernabilidade, a aceitação da diversidade política é fundamental para o amadurecimento democrático. É natural que surjam tensões quando temas como a imigração, a justiça ou a corrupção são debatidos com propostas radicais e antagónicas no Parlamento. E a ampla base eleitoral de um conjunto restrito de partidos nunca representou um consenso social tão amplo quanto sugeriam as percentagens. Sempre houve temas em que as preferências dos cidadãos não eram devidamente refletidas nas propostas dos partidos centristas, sem, no entanto, levarem ao voto em alternativas. A inovação da situação atual consiste no surgimento sustentado de movimentos que conseguem transformar estes temas, e as preferências não atendidas do eleitorado, em votos.

Os casos do Chega e do PAN são emblemáticos. Ambos conseguiram recentrar o debate político em torno de temas antes periféricos, como a justiça penal, a imigração ou os direitos dos animais. Mas mais do que representar nichos do eleitorado, muitas das suas propostas, tal como o agravamento das penas para certos crimes ou a criminalização dos maus-tratos a animais, reúnem um amplo consenso social.

Como adaptar o sistema político à nova realidade?

O atual modelo está claramente a revelar dificuldade em ajustar-se a esta nova realidade. E este ajuste não se fará com acusações de ignorância ao eleitorado. Nem com pranto sobre o papel das redes sociais, a incoerência das posições, a efemeridade de temas ou o excessivo centramento em personalidades.

É, antes, urgente gerar uma cultura de diálogo e compromisso, capaz de produzir coligações pontuais ou alianças temáticas, seguindo exemplos bem-sucedidos de outras democracias europeias. Mas, sobretudo, é necessário tornar o sistema administrativo e político mais resiliente à instabilidade governativa. Para isto, será fundamental passar competências para estruturas independentes e qualificadas da administração pública, blindando áreas estratégicas – como a gestão de fundos comunitários ou a sustentabilidade do SNS – dos ciclos eleitorais. Não podendo mudar o povo, resta mesmo mudar a forma de governar.