1. No mês de junho, entrou em vigor em França uma lei que pune com prisão até cinco anos a avaliação, análise, comparação ou previsão de práticas profissionais de juízes identificados. Trata-se do primeiro país do mundo a estabelecer tal proibição, que tem como efeito principal limitar a utilização de sistemas de inteligência artificial (IA) para estabelecer padrões relativos à prática judiciária.

A análise do comportamento judicial a partir das respetivas decisões é um campo de estudo com larga tradição nos Estados Unidos. Os juízes do Supremo Tribunal norte-americano, por exemplo, são escrutinados, através da análise, do estudo e da comparação das respetivas decisões.

É sabido que a legitimidade das decisões judiciais se reforça através da sua fundamentação e respetiva comunicação ao público. Hoje, estão digitalizadas e disponíveis na internet, por diversas vias, as mais importantes decisões judiciais de inúmeros países do mundo. A sua análise, designadamente através de modelos preditivos, contribui para a criação de um ambiente de maior segurança jurídica, pois as partes e os terceiros indiretamente afetados podem mais facilmente tomar decisões com base no modo como o direito quotidianamente é aplicado pelas instâncias judiciais.

Através de sistemas de IA, hoje disponíveis em várias jurisdições (judicial analytics), é possível prever, com maior ou menor fiabilidade, o sentido provável de uma decisão a partir de tipologias de casos decididos por determinados juízes.

2. A criminalização agora instituída em França terá resultado de uma forte pressão dos juízes. De acordo com o Verfassungsblog, a utilização de machine learning para comparar o comportamento de juízes em casos de pedidos de asilo revelou enormes discrepâncias entre magistrados. Estes não terão gostado de ver expostas pré-compreensões (ou preconceitos?) a favor ou contra a concessão de asilo a estrangeiros.

Mas é um erro manifesto proibir este tipo de tratamento da jurisprudência dos tribunais franceses, ainda que sob o pretexto de salvaguardar a privacidade dos juízes ou a reputação do sistema judicial.

Antes de mais, os próprios juízes deveriam ter interesse no funcionamento transparente do sistema judicial. Se as decisões de um juiz se desviam de forma sistemática do que é o padrão para casos semelhantes, o público tem direito a conhecer o desvio e as razões que o motivam, sem prejuízo da independência do poder judicial.

É mesmo discutida a compatibilidade desta proibição com o princípio da liberdade de expressão, consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e na Constituição francesa.

3. Numa época em que a tecnologia tem impacto em todos os setores de atividade, e em que a inteligência artificial é uma ferramenta omnipresente, o desenvolvimento científico e tecnológico deve submeter-se a limites éticos e a um enquadramento regulatório.

Mas a proibição pura e simples, para mais acompanhada de criminalização, da utilização da identidade dos juízes na análise do comportamento judicial é claramente uma medida desproporcionada para a tutela dos interesses em causa.

A IA não é inimiga dos juízes. É, sim, inimiga da opacidade e da distância entre os tribunais e o público em geral, que não serve ninguém. Nem os próprios juízes.