Quando, recentemente, visitei a Colômbia e estive em Cartagena das Índias, tive a possibilidade de estar no Palácio da Inquisição. Cá fora, numa das paredes do Palácio, pode ver-se a Janela da Denúncia. Era aí que muitas pessoas, por medo, inveja, crença ou outra qualquer motivação, entregavam a sua denúncia sobre este ou aquele alegado herege.

A partir daí iniciava-se um processo, muitas vezes construído de modo a confirmar a denúncia. Muitas vezes este processo incluía, para obtenção de prova através de confissão, a tortura do suspeito. Esta durava, muitíssimas vezes, até que o alegado herege acabasse por confessar que o era, livrando-se assim do sofrimento que lhe era infligido.

Em Portugal, a Santa Inquisição foi implementada a partir da bula papal de 1536 e apenas foi oficialmente extinta em 1821. Nestes quase 300 anos, estimativas chegam a apontar 300.000 condenados e 30.000 execuções. Também na ditadura do Estado Novo, durante 40 anos, vigorou em Portugal um sistema de estímulo à denúncia. Em 1933 foi criada a PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que mais tarde se veio a designar por PIDE e ainda posteriormente por DGS e apenas extinta com a revolução de Abril de 1974.

Tanto num momento histórico como noutro, mais do que esta ou aquela denúncia e denunciante, criou-se uma cultura de denúncia. A denúncia fazia parte da sociedade e a população passou a usá-la instrumentalmente para os seus interesses particulares de circunstância.

No regime democrático em que vivemos, como é expectável, existem denúncias, e elas também fazem parte do sistema de justiça e muitas vezes desencadeiam investigações e processos judiciais.

Evidentemente, com a enorme diferença, de existirem direitos e garantias que protegem os denunciados, logo até “começando” pela existência da presunção de inocência protegida pela Constituição da República Portuguesa “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado” e pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia “Todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa”.

Mas a condição de arguido é estabelecida automaticamente no decorrer de uma denúncia? Pode ler-se no sítio na Internet da Procuradoria-geral da República “Arguido significa ser um sujeito processual, formalmente constituído como tal, ou contra quem haja sido deduzida uma acusação ou aberta a instrução, por sobre ele recaírem, num certo momento processual, fundadas suspeitas de ter praticado ou comparticipado na prática de um crime.” E o que serão fundadas suspeitas?

Para alguns autores será a imputação de factos, que em abstracto consubstanciam um crime, que poderão ou não virem a ser comprovados em fases futuras do processo e não se diferenciam de meras suspeitas. Daqui derivam duas observações pouco inovadoras, mas que gostaria de sublinhar: a subjectividade da constituição de arguido e a ausência de uma relação do conceito de arguido com a forte possibilidade de ter existido qualquer crime. Na verdade, basta haver denúncia para poder haver um arguido.

Num artigo publicado na revista “Legal Criminal Psychology”, no ano passado, era feita uma análise a possíveis fontes de enviesamentos na acusação. O artigo identifica os vieses confirmatório e de indução pelo papel, uma mentalidade de acusação e o sistema de recrutamento e selecção para a magistratura. Os enviesamentos na tomada decisão são humanos. Inerentes aos momentos em que decidimos e mesmo quando somos especialistas.

Daniel Kahneman, Psicólogo e Prémio Nobel da Economia em 2002, conceituado pelo seu trabalho em heurísticas, enviesamentos e processos de tomada de decisão, disse em entrevista ao “The Guardian”, em 2021: “tenho conversado muitas vezes com juízes sobre a possibilidade de fazer investigação sobre como o ruído afeta o seu julgamento. Mas, sabe, não é do interesse da comunidade judicial investigar-se a si mesma.”

Todavia, a actividade dos magistrados tem um impacto tremendo na vida das pessoas e na saúde das democracias. Mais justiça, no sentido de melhores decisões judiciais, deverá ser prosseguida por mais e melhores meios, e esses meios também passam por mais investigação sobre o processo de decisão dos magistrados e mais formação sobre enviesamentos nos processos de tomada decisão inerentes à actividade judicial.

A lei não é assim tão objectiva. E a lei pretende regular comportamentos. E os comportamentos e processos mentais têm uma ciência que os estuda e que tem de contribuir com mais conhecimento para a melhoria do sistema de justiça.

Para além disso, precisamos de mais literacia dos cidadãos sobre esta matéria. Juntar-se-ão outras medidas necessárias, mas também muito mais discutidas na opinião pública e pelos decisores e que me abstenho aqui de reforçar. Tudo para travarmos julgamentos na praça pública, como que fogueiras inquisitoriais, que queimam vidas e fazem arder lentamente a democracia, mas também nos desviam o foco da imprescindível acção judicional autónoma, essencial para a promoção de uma sociedade coesa e mais justa.

Nota: O ruído referido por Kanheman é o ruído no processo de decisão, e é um problema que surge devido à conjugação de vários factores como enviesamentos, humor, dinâmicas de grupo e reações emocionais, sendo mais imprevisível e inconsistente que os “simples” enviesamentos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.