Mas é verdade. Um evento de adesão voluntária, que mobilizará mais de um milhão de participantes estrangeiros, tem sido alvo de um invulgar escrutínio à gestão pública e de uma notória antipatia contra demonstrações de fé.
Poderíamos explicar a questão de forma simples, reconhecendo que as massas se movem essencialmente por preferências muito elementares de amor e ódio, navegando depois acriticamente as ondas de indignação induzida no espaço público pelos meios de comunicação. Mas, por muito que isso ajude a explicar a intolerância visceral e a intromissão de algumas pessoas num dos muitos eventos que preenchem o Verão (e que lhes poderia passar perfeitamente ao lado), não é justo arrumar o assunto sem reconhecer que existem críticas válidas e sustentadas, diferentes das críticas superficiais ou mal-intencionadas.
Apreciar e respeitar um raro momento de expressão de fé colectiva não implica dedicar uma ode ao evento, alinhar com o seu estilo ou aderir ao grupo. Existirão certamente aspectos geradores de discórdia no domínio espiritual dentro da própria Igreja e que poderão ser objecto de interessante debate.
Poderão existir críticas à mercantilização da religião, ao pendor turístico do evento, à centralidade da acção social no discurso em detrimento dos assuntos da alma, ou até críticas a alguma idolatria involuntária em torno da imagem do Papa Francisco. Mas questões desta natureza exigem sempre reflexões cuidadas, pertencem a outros fóruns e decerto que só apoquentarão algumas franjas da nossa sociedade. São, portanto, pouco relevantes para a discussão em causa.
As críticas focam-se sobretudo em aspectos repreensíveis no domínio administrativo e financeiro, nomeadamente, o uso considerável de receitas públicas, o sistemático recurso a ajustes directos, o aproveitamento político de representantes sem convicções, e possíveis dificuldades de circulação ou de segurança causadas pela grande enchente.
Ainda assim, importa notar que estes pontos críticos dizem mais daquilo que caracteriza o Estado português do que de qualquer responsabilidade imputável à Igreja (que pagará mais de metade da despesa). É natural que o Governo aproveite para ficar a assistir de bancada a todo esse coro de críticas, enquanto os contínuos desvarios do Partido Socialista vão passando entre os pingos da chuva.
Note-se ainda que são aspectos de proporção irrisória neste evento, comparando com a prática corrente a que somos condenados em Portugal, tanto a nível da despesa alocada, como a nível de confusão associada à entrada massiva de estrangeiros. Existem realmente opções políticas desastrosas, financeiras e demográficas, que deixam um pesado e duradouro rastro de destruição, mas um evento de uma semana não será certamente uma delas.
Para lá das críticas fundamentadas e legítimas, sobressai o ruído da mesquinhez contabilística que vem à baila de forma oportunista para esconder o mais profundo ódio de estimação contra a fé alheia. Veja-se, como exemplo paradigmático, a ousadia do suposto artista Bordalo II. Beneficiário de 27 contratos por ajuste directo num valor total de mais de 700 mil euros, escolheu realizar um golpe de marketing anti-clerical ao estender um tapete com representação de notas de quinhentos euros na escadaria do palco-altar, em protesto contra os gastos envolvidos.
Diga-se de passagem, os ajustes directos aplicados a um evento de grande escala (gerador de elevado retorno) têm a virtude de remediar atrasos (mesmo que merecedores de crítica) e de agilizar os processos, enquanto nas criações do tal Bordalo II, falamos da escolha explícita de produtos de gosto duvidoso e que poderiam não vingar frente à concorrência.
Se o debate for arrastado para a questão do suposto ataque à laicidade do Estado, a crítica revela-se ainda mais absurda, primeiro, porque a requalificação urbana que absorve a maior fatia do investimento estatal não se relaciona com favorecimento religioso e, segundo, porque o poder público apoia eventos de relevância cultural e social.
Acresce, no coro dos pessimistas, a previsão do caos, retratando os participantes com atributos particularmente destrutivos e bárbaros. Antecipa-se que tudo irá correr mal e revela-se má disposição num tom quase chauvinista de quem parece ter pouca vontade de partilhar o espaço público com os peregrinos temporários, pelo simples facto de serem fiéis, em vez de adeptos atraídos por um qualquer evento desportivo.
No fim de contas, e esgotada a animosidade temporária contra a festa, as hostes jacobinistas que agora depreciam todas as obras e reforço de meios, acabarão por usufruir de trabalhos de reabilitação e interiorizá-los de forma natural na sua muito laica e descontraída rotina lisboeta. Não se lembrarão de toda esta conversa, da mesma forma que não se lembram dos detalhes e contexto em que se ergueram catedrais ou grandes exposições, como a de 1998 no actual Parque das Nações, ou a de 1940 em Belém.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.