Ao escrever esta crónica pesa-me a estranha tristeza de relatar a morte da zungueira, de nome Juliana Cafrique, com apenas 28 anos, que deixou três crianças em tenra idade. Ela acabou por ser vítima de um disparo de um agente da ordem pública angolana, morrendo no proclamado mês da mulher, onde o dia 8 de Março se consagrou como feriado em Angola, em homenagem às lutas históricas protagonizadas pelas mulheres.

Assim, este ano ficará para sempre gravado nas nossas memórias como o dia em que sucumbiu uma zungueira no Rocha Pinto, Luanda, provocando actos de reacção popular contra esta acção hedionda. Este nefasto acontecimento demonstrou que os cidadãos angolanos têm vindo a adquirir uma maior consciência em relação à injustiça associada às acções de violência perpetradas pelo Estado, provocando uma situação de indignação generalizada da população mais pobre, solidária com a ocorrência.

Por outro lado, assistiu-se a uma reacção muito tímida dos grupos de defesa dos direitos humanos, sendo de destacar, por exemplo, o silêncio da Ordem dos Advogados e dos partidos políticos, apesar de o CASA-CE ter tentado um voto de protesto ao nível da Assembleia Nacional. A própria polícia angolana procurou contornar a situação através da oferta de emprego ao esposo da vítima.

A Administração Pública, e os seus responsáveis, têm revelado bastante dificuldade em assumir responsabilidades pelos seus actos, acabando por recorrer a meios de compensação pelos danos causados ao cidadão. Neste caso a oferta de emprego acaba por constituir, em última instância, uma grave ofensa à família.

Esta tentativa de fuga a qualquer tipo de responsabilização por parte da polícia está em consonância com os actos de violação dos direitos humanos que têm marcado esta instituição (recorde-se as execuções sumárias de alegados autores de infracções criminais em 2018). E o facto de se ter vitimado uma mulher encaixa-se, perfeitamente, na lógica da violência estrutural em África, que afecta, particularmente, o corpo feminino.

A mulher tem sido, ao longo do tempo, vítima de acções perpetradas pelo Estado ou por grupos com capacidade coerciva/militar. Por exemplo, em contexto de guerras, muitas mulheres foram violadas, desmembradas ou esquartejadas, outras julgadas sob a acusação de feitiçaria, ao ponto de serem queimadas vivas em fogueiras.

Poderíamos considerar que as situações supra relatadas decorreram numa zona de indistinção, utilizando um conceito de Achille Mbembe. No entanto, diversas situações dessa violência estrutural africana ocorrem em zonas de afirmação de um suposto “Estado de Direito”. De salientar os vários casos de mutilação genital feminina que impedem a realização sexual plena de várias gerações de mulheres.

Neste caso, a mulher zungueira foi uma das vítimas da “Operação de Resgaste” lançada pelas autoridades angolanas com vista a repor a autoridade do Estado angolano em zonas urbanas, o que implica, necessariamente, o combate à venda desordenada em Luanda.

De facto, não há uma zona geográfica preferencial para a ocorrência de actos de violência contra a mulher em África, porque a violência estrutural insere-se na lógica de aterrorizar os populares e impedir o desejo de transformação política por via de protestos. Por isso, no continente africano existe uma espécie de democracia de homens excessivamente armados em zonas militarizadas e não militarizadas, assistindo-se à imposição da autoridade política através do medo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.