Portugal, outubro de 2018. Há um grupo no Facebook de apoio ao juiz Carlos Alexandre. Tem 100 mil seguidores. Temos um programa na SIC chamado “A Procuradora”, em que quase sentimos uma vergonha alheia solidária com um Rodrigo Guedes de Carvalho obrigado a contribuir para as audiências da SIC, pagando um preço que nenhum jornalista sério devia ser obrigado a pagar. E vivemos a escolha do juiz de instrução da maior operação judicial do país como se se tratasse do concurso Miss Universo. Porquê? Porque a Justiça é o tema da moda. E, portanto, sujeito a todo o tipo de banalizações.

Como é que chegámos aqui?

Portugal, 21 de outubro de 2014. José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa. Além da polícia, estavam os jornalistas. Uma comitiva à espera da mais importante detenção da história do país. Para que o país pudesse assistir em direto. Os 15 minutos de fama da Justiça portuguesa, que, sabemos agora, se prolongariam até aos dias de hoje. Jornalistas avisados pelo sistema de justiça de que, a partir daquele dia, os poderosos deixavam de estar a salvo. O país aplaudiu e celebrou com sede de vingança. Afinal, a Justiça tinha mão pesada e andava a trabalhar.

O problema destas narrativas épicas é que poucos conseguem prever os seus efeitos perniciosos. Quando a Autoridade Tributária começou a funcionar em Portugal, celebrámos sem antever os excessos e abusos que se seguiriam e que todos reconhecemos. Quando se fala e Justiça, o nível de atentado à segurança dos indivíduos, à liberdade, à democracia vai muito mais longe, é potencialmente letal.

O que dizemos, de facto, quando, como sociedade, e perante a escolha de um juiz de instrução, consideramos que 1) pode haver uma ponderação subjetiva sobre quem fará um trabalho melhor e, 2) que um dos juízes é melhor do que o outro, porque esse “de certeza que prende os poderosos”?

Antes de respondermos “não interessa, desde que o Sócrates e afins vão presos”, pensemos para além da espuma dos dias. Quer dizer que entregamos a um juiz individual o poder da Justiça. Quer dizer que nos colocamos na mão de uma pessoa. Quer dizer que prescindimos do escrutínio, dos princípios, da Lei. Porque acreditamos mais no homem do que no Sistema. Estamos a dizer que o Sistema é um homem. Isto tem um nome. E não rima com liberdade nem com democracia. E arrependemo-nos sempre que caímos na tentação de justificar os meios com os fins.

Dou por mim a pensar que, perante este cenário, a escolha de Ivo Rosa nos garante mais que a Justiça será cumprida tendo em conta princípios e valores dos quais não estou pronta nem disponível para abdicar. Mas esta convicção está tão errada quanto a anterior. Porque volta a ser parcial, como é a que se lhe opõe. Porque narrativas épicas causam precisamente esta polaridade extremada pouco saudável e perigosa.

Chegámos aqui porque o Ministério Público, fazendo uso da comunicação social conivente e sedenta de fontes e notícias, montou uma narrativa de que “se queremos ver os culpados presos, têm de nos dar carta-branca”. Escutas nem sempre justificadas, delações premiadas não assumidas, pressão sobre o sistema, buscas em direto para as televisões, artigos sobre os protagonistas da Justiça a divinizá-los como Messias que chegou para salvar o país. Quem não adora?

Esperemos que a consciência coletiva – a de todos nós – acorde e seja o Cavalo de Tróia desta estratégia perniciosa que começou no MP, que convocou e encontrou respaldo no resto do sistema de Justiça e media portugueses e, não tarda nada, também na política. Basta pensar que chegou o dia impensável em que um André Ventura desta vida tem direito a palco.