1. Há um concurso em aberto para a produção das palavras mais bonitas sobre a morte do grande artista que se conheceu como Maradona. Respeito. Respeito, sobretudo, a pequena horda de amigos da tribo do futebol que com ele se cruzaram e viveram dias felizes.

Retenho, como exemplo maior, a emoção de Valdano, seu companheiro de seleção no Mundial’86, filmada em direto antes de ser vertida num texto generoso mas substantivo em que nada se esconde dessa dicotomia entre o grande Maradona, génio da bola, e o frágil Diego, o homem que sobreviveu à curta mas impactante glória dos estádios.

2. Confesso: eu também fui tocado pelo fenómeno Diego Armando Maradona, o nome inteiro que cola todos os pedaços da sua complexa vida. Testemunhei aquela incrível capacidade de domínio de uma bola que parecia sempre subjugada aos seus desejos.

Há vídeos na internet que trazem até aos dias de hoje pequenos fragmentos dessa maravilhosa relação que o libertou das leis que regem a vida do ser humano comum. Eu não precisaria dessas imagens. Consequência da idade, e da profissão de jornalista, vi-o jogar muitas vezes ao vivo, até em dois Mundiais de futebol – no Itália’90, no qual rebocou uma frágil Argentina até à final perdida com a Alemanha; e no USA’94, competição que marcou o final da sua carreira ao mais alto nível depois de um controlo anti-doping positivo ao segundo jogo.

Esse episódio, acrescentado ao da anterior suspensão internacional por consumo de cocaína, foi o ponto quase final. Regressou à terra, ao seu Boca Juniores, definhando sempre, até pendurar as botas em 1997.

3. Quando penso em Maradona, reconheço a genialidade futebolística, mas a imagem que me aparece sempre em primeiro lugar é a de uma tarde no Rose Bowl, em Pasadena, nesse Mundial dos EUA. Depois de já ter faltado à equipa no jogo anterior, com a Bulgária, no Texas, Maradona voltou à tribuna para assistir a outra derrota (com a Roménia) de uma equipa órfã de si. Ainda clamava inocência, na qual já ninguém acreditava, mas o que mais transparecia era a arrogância, o olhar superior, o andar exuberante e ruidoso na companhia de três ou quatro guarda-costas. O menino alegre e jovial dos tempos de Barcelona e dos primeiros anos de Nápoles tinha ficado retido em lugar incerto. Aquele homem já era outra pessoa, um caminhante de um mundo só dele.

4. Para além do genial jogador; para além do homem frágil, impreparado, que entregou o seu corpo à droga e ao álcool – coisa que em grande parte só a ele dizia respeito; para além do oportunismo político evidente que o fez ligar-se a ditadores como Fidel, em Cuba e Chávez e Maduro, na Venezuela (que também o aproveitaram bem, acrescente-se); para além de arruaças frequentes e de até ter disparado uns tiros de pressão de ar contra jornalistas interessados em cobrir os seus desmandos de figura mediática, Diego Maradona foi o homem capaz de uma das maiores ignomínias: fechar os olhos à existência de filhos. Não criou a maior parte deles. Não contribuiu para o seu crescimento e educação. A pelo menos dois só reconheceu depois de adultos, pese o esforço de décadas das mães e as iniciativas dos próprios. Neste momento, para além dos cinco filhos oficiais de quatro mulheres, presume-se que tenha deixado ficar pelo menos onze, três ou quatro dos quais em Cuba, onde em determinado período se procurou tratar das dependências.

Maradona foi maravilhoso como artista e terrível como homem. Não foi o primeiro. Não será o último. Mas digam isto aos jovens: o futebol, felizmente, tem exemplos incomparavelmente melhores.