1. Sempre prestei a devida atenção ao milagre da natureza que faz os homens aderirem a religiões, partidos, clubes, seitas e tribos diversas e portarem-se como seres amestrados, capazes de pensarem todos a mesma coisa e de reagirem de uma só maneira.

Encanta-me a forma como se entra num partido e se têm as mesmas certezas, da saúde à economia; como se preenche a ficha num clube e só se veem penalties a favor; como se coloca um simples avental e logo todos à volta são irmãos, sobretudo de negócios e obediência; como qualquer tribo tem os índios que precisa, e se calhar merece.

A fé, nas suas mais variadas dimensões, continua a ser para mim um mistério – e parece que isso será uma virtude, havendo também quem lhe chame, entre outras coisas, “coerência”. Seja.

2. Sérgio Sousa Pinto, notoriamente, não parece ser um bloco desse notável cimento. E, no entanto, não é um militante qualquer do PS. Foi líder da Juventude Socialista (eleito em 1994); deputado europeu apadrinhado por Mário Soares, com quem coincidiu em Bruxelas e Estrasburgo e escreveu um livro nesses anos (“Diálogo de Gerações”, 2002). Fazia parte do secretariado nacional do partido quando António Costa, em 2015, formou o governo apoiado no PCP e Bloco de Esquerda. Europeísta convicto, demitiu-se desse cargo em protesto pela geringonça. E desde aí, como já antes disso, em clima adverso fala de forma desalinhada e espantosamente livre.

Dou alguns exemplos.

Em dezembro de 2019, disse na “Sábado” que a classe média já estava espremida até ao tutano e que o SNS se encontrava “a cair aos bocados”.

Em julho do corrente ano, afirmou ao “Público” que “o grupo parlamentar do PS é uma repartição do Governo”.

Em setembro, no “Observador”, defendeu o direito dos encarregados de educação a oporem-se à presença dos filhos nas aulas de Cidadania: “A cadeira, mais do que doutrinadora, é inútil”.

Em outubro, no “Expresso”, também foi claro, enquanto deputado: “É para votar contra a instalação obrigatória da StayAway Covid”.

3. Agora, para repetido escândalo da família política e parentes próximos, foi esta semana à RTP (programa “É ou não é”, moderado por Carlos Daniel) proferir palavras ainda mais terríveis. Cito: “Temos de tentar conversar com os eleitores do Chega, aproximar-nos dessas pessoas e perceber o que as leva a uma solução de rejeição total do regime. As pessoas votam no Chega não é por serem fascistas, não é nada disso: é porque estão fartas de um modelo de regime, que é o único modelo de sucesso democrático que o nosso país conheceu. Se queremos preservá-lo, temos de entabular um diálogo com essa parte do País”.

Estas palavras já poderiam ter sido ditas por quem quisesse dar uso à massa encefálica e abdicar do estatuto de câmara de ressonância do politicamente correto estabelecido, sobretudo depois das eleições nos Açores. Ao invés, temos tido a histeria, como a que recebeu a ida de André Ventura a uma entrevista na TVI.

Volto a Sérgio Sousa Pinto. O desfastio com que disse o que disse (e que recomendo ouvir ao vivo no RTP Play), só foi comparável com o olhar surpreendido de alguns convivas em redor. Não tivesse ele o passado que tem e o ataque ao revelado ‘fascista’ ter-se-ia feito logo ali, à boa moda deste clima inquisitorial do Portugal 2020.

Só políticos lúcidos, como Sérgio Sousa Pinto, podem ajudar a manter Portugal fora do extremismo, equivalente, de esquerda e direita. Não por acaso, o desenvolvimento humano sempre foi obra de gente tolerante e aberta ao diálogo.