Em plena pandemia global poderá até ser insensível citar a frase de Bill Shankly sobre o futebol não ser uma questão de vida ou morte, mas sim um assunto muito mais sério do que isso. O lendário treinador do Liverpool não viveu, felizmente, até à época da Covid-19, com os estádios vazios, e também não teve de assistir à propagação de outro vírus perigoso para o futebol, a ganância. Se para alguns o futebol é mais importante que a vida ou a morte, para outros o dinheiro é mais importante do que tudo o resto.

Nesse lote de indivíduos podemos certamente incluir os donos e os dirigentes do dirty dozen de clubes que anunciaram no passado domingo que iriam participar numa nova Superliga europeia, um torneio de 20 equipas, com 15 fundadores permanentes e cinco ‘penetras’ via qualificação anual.

A ideia era poupar esses fundadores milionários a terem de correr o risco financeiro de não se qualificarem ou serem eliminados cedo, como pode acontecer (e acontece, felizmente) na atual Liga dos Campeões da UEFA. O pote de ouro (de 3,5 mil milhões de euros) seria fornecido pelo banco de investimento americano J.P. Morgan.

Não sejamos ingénuos, o futebol há muito que deixou de ser apenas um desporto para se tornar num gigantesco negócio de entretenimento, que envolve valores astronómicos. O fosso entre os ricos e os pobres é visível no desequilíbrio entre regiões, entre ligas e entre clubes.

As estruturas oficiais, como a UEFA e a FIFA, elas próprias com longos históricos de falhas graves de governance, foram contribuindo para a clivagem, alterando regularmente as regras para oferecer uma maior fatia do bolo e as melhores condições aos clubes mais ricos e poderosos, que há muito tempo ameaçavam ir embora com a bola para outra liga. Não surpreendeu ver alguns desses clubes tentarem finalmente tornar as palavras valentes em ação decisiva.

O que surpreendeu foi a forma como o fizeram, tão amadora que o tempo entre o anúncio e o abandono do projeto foi menor do que o prazo de validade de um pacote de leite fresco, para citar apenas uma das milhares de piadas que surgiram na internet.

A ganância deve causar cegueira, pois os clubes não conseguiram antever a onda de indignação e de protestos que a ideia elitista poderia causar. A pressão principal veio dos adeptos dos seis clubes ingleses, descontentes por terem sido ignorados numa questão tão importante. Os comunicados divulgados por alguns dos clubes na hora da desistência são quase cómicos, pois admitem que não consultaram os adeptos e (surpresa!) não esperavam tal reação.

Vários políticos também contribuiram para forçar o volte-face, mas é difícil não desconfiar que possa ter sido para apanhar boleia de uma onda popular, especialmente no caso de Boris Johnson, que só com muita benevolência poderíamos classificar como homem do povo.

A vitória dos adeptos nesta batalha foi clara, mas nada garante que o mesmo desfecho se aplique à guerra. A UEFA poderá até representar o mal menor, mas para continuar a fazer crescer os torneios e encher os cofres vai ter de manter os grandes clubes felizes. A expansão da Liga dos Campeões para 36 equipas, num torneio sem fase de grupos, a partir de 2024 é prova disso.

Florentino Pérez e Andrea Agnelli, presidentes do Real Madrid e da Juventus, respetivamente, parecem não ter desistido por completo da ideia da Superliga e poderão passar a campanha para dentro da UEFA.

A maioria dos adeptos percebe que o futebol, tal como outros sectores, tem de evoluir de forma permanente e que o fator financeiro é crucial. Há outras modalidades com modelos de acesso fechados, de participação por convite, mas num desporto universal como o futebol isso iria sempre ser difícil. Foi essa fronteira que os adeptos desenharam esta semana, dizendo a magnatas e investidores que sem competição não há competições.