No documentário disponível na Netflix sobre os motins de Los Angeles de 1992, “LA92”, começamos por assistir aos motins de 65 em que o jornalista Bill Stout descreve os eventos e termina por colocar a questão “De que adianta à nossa nação colocar um homem na Lua, se não conseguimos curar a doença nas nossas cidades?” Referia-se à doença do racismo. Ninguém fica indiferente ao assistir à indignação explosiva da comunidade negra e outras minorias étnicas de Los Angeles perante o veredicto que ilibou quatro polícias do espancamento brutal de Rodney King, filmado em vídeo e observado por milhões de pessoas. Os motins causaram cerca de 55 mortos, 11 mil detenções e elevados prejuízos materiais.

Vinte e oito anos depois da revolta que pôs a cidade de Los Angeles a ferro e fogo, forçando a intervenção militar para restaurar a ordem pública, o homicídio de George Floyd em Minneapolis às mãos de um polícia lançou uma vaga nacional de protestos pacíficos, mas desta vez num contexto diferente.

Há coisas que nunca mudam. A raiz do problema continua a ser a brutalidade policial que tem levado às mortes de demasiados cidadãos negros, com grande parte das instituições criadas por brancos a protegerem esses polícias e a conferirem-lhes imunidade, negando justiça às vítimas. Os vídeos a circular nestes últimos dias mostram uma reação violenta policial chocante não só contra protestantes, mas também contra jornalistas ou crianças.

Não ajuda que, a partir de 1997, se tenha tornado possível à polícia norte-americana adquirir equipamento militar, levando a uma militarização dos departamentos policiais sem grandes restrições. Torna-se difícil proteger e servir os cidadãos com tanques e lança-granadas habitualmente usados contra combatentes inimigos em zonas de guerra. Quem não se lembra do equipamento militar usado nos motins de Ferguson de 2014?

E, desta vez, a América enfrenta o grave problema de uma liderança incendiária, divisiva e abertamente racista que insiste em provocações contínuas e demite-se por inteiro das suas responsabilidades de unir o país. As ações da Presidência fomentam abertamente o ódio e o caos. O desprezo de Trump pela democracia que o viu eleito é mais visível a cada dia que passa. Parte das suas bases de apoio nacionalistas e fundamentalistas (conta com mais de 80% do voto evangélico branco, por exemplo) vivem alucinadas e imersas nas suas próprias crenças religiosas e ideológicas. As tendências autoritárias de Trump estão mais visíveis do que nunca e continua na sua senda de minar todas as instituições democráticas e governar de forma fraturante, não se coibindo da tentativa de supressão de votos nas próximas eleições em novembro.

E haverá alguém que esteja convencido de que Donald Trump irá ceder facilmente o seu lugar, caso outro presidente seja eleito em novembro? Pode o mundo, já tão fragilizado na sequência da pandemia, correr o risco de ver uma nova eleição de Trump ou uma disrupção massiva caso não seja eleito? As políticas internas e externas dos americanos dizem-nos respeito a todos na medida em que influenciam e movimentam a dinâmica global. O perigo em que se encontram eles, e nos encontramos nós, é real ao enfrentarem em simultâneo o impacto económico de uma recessão global, uma pandemia em curso e desobediência civil em larga escala.