Para mal dos meus pecados, passei a última semana a ler o livro atribuído a José Sócrates, “O Dom Profano”, por empréstimo de um amigo, ou seja, o método socrático por excelência. Não recomendo. As únicas partes que merecem ser lidas, não pela qualidade (inexistente) mas pelo que revelam, são as únicas que não deixam dúvidas de terem sido efectivamente escritas por José Sócrates: as páginas 114 a 116 e 143 a 145, sobre Lula da Silva e outras “afinidades electivas” do ex-líder socialista, que dão um toque pessoal e de autenticidade à colagem de citações aparentemente feita (à semelhança da obra anterior de Sócrates) pelo copista Domingos Farinho, e que têm como tema mal escondido a própria pessoa do ex-primeiro-ministro sob investigação por suspeita de crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Lula surge no livro como alguém com um “percurso singular”, cuja “liderança resultou em triunfo sobre todos os preconceitos”, e a quem “nada foi oferecido sem luta”. “Agora”, Lula “volta a ter de prestar provas perante uma direita política” que é “capaz de tudo”, com a “falsa acusação de corrupção” (como é que ele sabe que é falsa?) transformada “no novo punhal de Brutus”, e a “manipulação judicial” no “substituto ideal dos militares”. O “velho leão” Lula não é aqui mais do que um avatar do “animal feroz” Sócrates, que se julga “perseguido” pela justiça portuguesa, os media e a “direita”, que supostamente ainda não perdoaram o bem que ele crê ter feito ao país, e a “vida”, cujo “último capítulo” não está “ainda escrito” mas “promete”, é a dele próprio, não a do “exemplo” sobre o qual ele escreve.
Que seja para este triste fim que Sócrates se sujeita à humilhação pública inevitável após a revelação de que o seu primeiro livro não fora escrito por si, é algo que me ultrapassa. Especialmente porque o exercício acaba por revelar precisamente o contrário daquilo por que Sócrates se quer fazer passar: ao escrever que as tais “afinidades electivas” (Soares, Mandela, Gandhi, Luther King) nunca fugiram às suas responsabilidades recorrendo à “procura histérica” de “bodes expiatórios” ou imaginados “complots formados por inimigos escondidos”, Sócrates apenas consegue lembrar-nos de que ele próprio não tem feito outra coisa na vida (a “crise internacional”, as “agências de rating”, os jornalistas que o perseguem, “a direita”, os juízes, enfim, o mundo em geral), e mostra ser alguém que nem sequer tem a noção de como nada do que diz bate certo, num comportamento que ultrapassa os limites do racional e que só um profissional do ramo poderá realmente compreender.
Tudo isto seria menos grave se se tratasse de um mero infortúnio pessoal do homem, merecedor apenas de comiseração e desejos de melhoras. Não é o caso. Sócrates foi primeiro-ministro deste pobre país, merecendo dos seus pouco ajuizados habitantes um apoio suficientemente volumoso para obter uma maioria absoluta, um segundo mandato ao leme dos nossos destinos quando o descalabro que estava para vir era já mais do que previsível, e que, ainda hoje, sabendo-se tudo o que se sabe, comanda a devoção de muitos e fervorosos adeptos. Não sei se tudo se explica pelo tal “carisma”, se pelo fascínio que os portugueses costumam nutrir por todo e qualquer político com apreço pelo autoritarismo, se pelo sistema de clientelismo que Sócrates construiu à sua volta. Mas que o poder que Sócrates exerceu e exerce neste país é uma maldição que nos atormenta, não tenho qualquer dúvida.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.