Numa das mais famosas passagens da literatura mundial, Shakespeare coloca na boca de Macbeth uma descrição da vida como sendo “uma história, contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”. Pessimismo antropológico à parte, veio-me esta passagem à cabeça a propósito da velocidade com que Donald Trump emitiu uma enxurrada de decretos no primeiro dia do seu novo mandato.
Estas ‘ordens executivas’, na sua ampla variedade, oscilam entre o trágico (saída do Acordo de Paris e da OMS) e o cómico (adeus golfo do México, olá golfo da América!), ameaçando ser altamente danosas para os direitos das pessoas transgénero, para os imigrantes e para tudo o que se atravesse à frente da agenda do novo radical-conservadorismo.
Convenhamos que o objetivo não é ter eficácia na maior parte destas medidas, é simplesmente deixar uma impressão. Trump é o dilúvio, pretende passar a imagem de conseguir desfazer quatro anos de Biden de uma penada, reforçar o símile de fazedor, impor uma nova ordem americana. Mas, pesem embora os danos e o sofrimento que causará, poucas destas medidas terão sucesso; basta pensar na catadupa de batalhas judiciais que se seguirão. A mera hipérbole do número de medidas tomadas quase em simultâneo visa confundir, deixar sem reação – com tanto a supostamente acontecer ao mesmo tempo é até difícil os adversários políticos concentrarem-se no que quer que seja.
A verdade é o que funciona
Temos, portanto, o som e a fúria, bem como resultados que prometem ser vazios. E a narrativa? Essa, está à solta. A vitória de Trump tem um profundo significado simbólico. Para já, porque é a vitória do particularismo sobre qualquer aspiração de isenção suprapartidária por parte das instituições.
Recordemos que há pouco mais de uma semana Jack Smith, o procurador que investigava o caso do ataque ao Capitólio, revelou haver provas suficientes para condenar Trump em tribunal, algo que só não terá acontecido porque… foi eleito. Outra das primeiras medidas foi o perdão aos invasores do Capitólio; afinal, crime não é violar a lei ou atacar as instituições, mesmo quando são a casa da democracia – crime, como se vê, é não se estar do lado ‘certo’.
Está aqui uma das chaves do fenómeno Trump e de todo o legado dos “factos alternativos”. Pouco importa uma verdade verificada empiricamente ou obtida por consenso intersubjetivo válido racionalmente quando se pode moldar a realidade pela força da narrativa que convence só porque funciona.
Terão os revoltosos feito algo de errado? Claro que não, se estavam do lado de quem ganhou – ainda que quatro anos depois. O facto de não terem razão em relação à alegada manipulação das eleições de 2020, ou a violência praticada são, claro, detalhes sem importância. Moral da história, se aplicada ao Presidente reeleito da (ainda) mais poderosa nação do mundo: pouco importa se se quebram todas as regras, desde que se ganhe; o poder tudo justifica e tudo perdoa.
O povo e as elites
Desvanece-se a pretensão de verdade objetiva, e o que fica? O conflito de narrativas. E, aqui, o meio digital desempenha um papel determinante. Lembremo-nos da narrativa, populista, com que Trump chegou ao poder em 2016: viera, o campeão do povo, “drenar o pântano” de Washington. Nesses tempos, Wall Street e as GAFAM pouco pareciam querer ser associados a Trump. E no entanto… contraste-se essa situação com a fotografia da oligarquia da tecnologia (Zuckerberg, Bezos, Pichai, Musk…) alinhada perante Trump.
Sinal dos tempos, dir-se-ia. Homens de negócios, sentindo como o poder muda de eixo, correm a alinhar-se com ele. Mas este alinhamento não é anódino. O nível de poder concentrado nas big tech é sem precedentes, tendo em conta a vastíssima base de utilizadores que têm e o poder que detêm sobre os dados dos mesmos.
E o que decidem fazer? Depois da radical mudança de política do ex-Twitter decidida por Musk (em nome da liberdade de expressão, agora quase ‘vale tudo’ – veja-se Musk a dirigir-se a Trudeau, chamando-lhe ‘girl’ e ‘governador do Canadá’) – eis que Zuckerberg se decide livrar dos verificadores de factos no Facebook. É de supor que as bolhas tendam a ficar mais seladas – que nos importa a realidade dos outros se temos a nossa?
Entretanto, o próprio Musk prepara-se para assumir, durante a Administração Trump, uma relevância política inaudita para um líder tecnológico, esperando-o um cargo no sugestivamente intitulado “Departamento de eficiência governativa” que, especula-se, no seu frenesim para eliminar burocracia, regulação e despesa, possa tirar financiamento à Segurança Social e à Medicare.
Mais uma vez: nada disto é para resultar, apenas para impressionar. Resta saber quanto tempo vão durar as figuras que agora pululam ao lado do Presidente; a julgar pelo primeiro mandato, poderá haver muita rotação, ódios, acusações, livros escritos. A não ser que o poder do Presidente se torne tão irrestrito, e a sua vontade de perseguição aos seus adversários se concretize de tal forma, que o medo impeça qualquer dissidência.
São estas as perspetivas da democracia na América, nos dias de hoje. Deste lado do Atlântico, resta-nos esperar por mais quatro anos de frenesim mediático e manter alguma racionalidade, tentando fazer o possível para que as consequências de uma política internacional errática do parceiro americano não se tornem catastróficas.
O cessar-fogo aguardado
Por entre o som e a fúria sobra a boa notícia do período de transição entre Biden e Trump: o cessar-fogo entre Israel e o Hamas. Felizmente, alguns reféns foram já libertados. Chega tarde, tanto sofrimento podia ter sido evitado, mas ainda bem que chega ao que sobra de Gaza e da sua população. Agora, está tudo por fazer. Depois de 15 meses de conflito, quase não resta pedra sobre pedra em Gaza, o número de vítimas é atroz, e muitas das suas instituições educativas foram destruídas. Mas, pelo menos agora, poderá entrar a necessária ajuda humanitária a uma escala mais significativa e algum raio de esperança abrir-se para aquela população martirizada.
É evidente que nada disto poderia acontecer sem Trump. Mas também aqui a sua sombra se faz sentir. Lembremos que em julho o Tribunal Internacional de Justiça declarou que a ocupação dos territórios palestinianos é ilegal, ou ainda os mandados de detenção emitidos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) em novembro. Mas daí nada se seguirá. Biden foi amplamente criticado por permitir a mortandade em Gaza e chegou a haver quem pensasse que a postura mais isolacionista de Trump seria melhor por comparação.
Mas eis que, chegado ao poder, já anunciou renovadas sanções contra o TPI e, por outro lado, levantou as sanções contra os colonos israelitas na Cisjordânia (muitas vezes de grupos de extrema-direita acusados de violência), o que, por sua vez, já levou a um aumento dos ataques contra palestinianos e a uma operação militar na Cisjordânia. Estamos esclarecidos.