Quando, no passado dia 4 de Maio, foi inaugurado oficialmente o troço da linha da Beira Baixa entre a Covilhã e a Guarda, não foi o investimento feito, nem a parte da “revolução” em curso na ferrovia que me prendeu a atenção. Lembrei-me que provavelmente tinha sabido de cor o seu trajecto, com estações e apeadeiros. Era obrigada a memorizar esta e as outras linhas de caminho-de-ferro de Portugal continental, de Angola e de Moçambique. Logo eu, que nunca tinha visto um comboio! Preparávamo-nos para o exame da 4ª classe, que seria para muitos alunos o terminus de uma breve travessia pelo mundo da instrução.

Essas “viagens virtuais” pela via-férrea, pelos rios e seus afluentes, pelas montanhas e cordilheiras de Portugal, mapeadas e sustentadas pela nossa memória, eram paradigmáticas do ensino de então.

Não perfilhando da afirmação de que “no meu tempo é que era bom” – manifestação irrefutável de uma iminente senectude – e contornando tentações maniqueístas, não tenho qualquer dúvida em admitir que naquele tempo (que era o meu) a memorização se sobrepunha à compreensão, mesmo nas disciplinas em que esta última me parece imprescindível; mas essa Escola, onde predominava um ensino transmissivo, alicerçado numa psicologia marcadamente comportamentalista, foi igualmente o esteio do sucesso de muitos (ou melhor, de uma elite) que a puderam frequentar.

Ao longo de toda a história da educação, um dos problemas com que se têm debatido as instituições escolares é a adaptação por parte da Escola às novas necessidades educativas tendo em conta a realidade envolvente. Essa transformação não pode ser deixada ao acaso ou às iniciativas pontuais e dispersas dos professores, mas necessita de ser orientada; ao desenvolvimento curricular pertence cumprir essa exigência.

Como refere Luís Aguiar-Conraria no seu artigo “A degradação do ensino” (Expresso de 30 de Abril), em que compara o ensino das últimas décadas, actualmente exige-se das crianças mais do que boa memória.

A partir dos anos 90, as reformas curriculares em Portugal passaram a incluir a noção de competência, o que significa organizar e desenvolver o currículo com o compromisso de criar situações reais onde estão presentes temas nos quais os alunos possam integrar e articular os seus conhecimentos.

Contudo, o currículo foi experimentando alterações um pouco ao sabor das sucessivas mudanças governativas, sem uma estrutura permanente que cuidasse em manter a coerência interdisciplinar, orientasse o processo e o monitorizasse. Dir-se-ia que vários ministros, com a preocupação de deixar a sua marca no sistema educativo, são acometidos por um frenesim “reformador”. E os vários governos vão-se sucedendo sem que seja feita uma eficiente avaliação curricular, com base na recolha de informações fiáveis e respectivas conclusões bem fundamentadas.

Vejamos um exemplo. Em 2001, as Orientações Curriculares para o 3º ciclo para a área disciplinar das Ciências Físicas e Naturais preconizavam o desenvolvimento de competências específicas em diferentes domínios como o do conhecimento (substantivo, processual, epistemológico), do raciocínio, da comunicação e das atitudes.

Dez anos depois, o XIX Governo Constitucional deu por finda a sua aplicação (despachou-as), por considerar que tal documento “não reunia condições para ser orientador da política educativa”, e prometia que os serviços competentes “iriam elaborar documentos clarificadores das prioridades nos conteúdos fundamentais dos programas; esses documentos constituir[iam] metas curriculares”. Que ainda demoraram dois anos a aparecer. Cinco anos volvidos, as Aprendizagens Essenciais são as suas sucessoras.

Comparem e descubram as diferenças. Não será, certamente, o tempo atribuído às Ciências Físico-Químicas: 3×45 minutos/semana. Será suficiente para o professor concretizar tão bons propósitos e orientações que os documentos oficiais preconizam? Para além do aspecto de uma tão grande abrangência sugerida pelos mesmos.

A ambiguidade do currículo formal pode ser a origem para a disparidade entre este e o ensino e a aprendizagem, ao proporcionar múltiplas interpretações por quem o utiliza, nomeadamente, os autores de manuais e os professores, o que significa que, na prática, pode diferir bastante do que os documentos curriculares explicitam.

Quando a resolução de uma equação é vista como uma listagem de passos a seguir, temo que a compreensão esteja a ser perigosamente erradicada.

Restringindo a minha apreciação aos manuais de Ciências Físico-Químicas, em contradição com a recusa da assunção de um ensino memorístico, verifica-se que muitos dos livros adoptados apresentam caixas de texto com definições, enunciados de leis, etc., sugerindo que só aquilo interessa saber (ou memorizar); a linguagem, com o pretexto de ser acessível, é pouco rigorosa e, na tentativa de facilitar, tornam, a meu ver, mais confusos determinados conceitos ou até mesmo induzem em erro.

Na minha opinião, baixar a exigência no ensino não será o caminho acertado para promover o sucesso de todos os alunos, designadamente daqueles que pertencem a grupos sociais desfavorecidos; estes serão os mais prejudicados ao ficarem impedidos de aceder a conhecimentos e a capacidades essenciais na sua vida futura e que só a Escola lhes pode proporcionar.

Os currículos actuais são conceptualmente exigentes e lançam desafios que vão muito para além da memorização de conhecimentos e de procedimentos rotineiros. Mas há que concretizá-los na sala de aula. Para que um mito não dê lugar a outro.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.