Muita gente recorda-se, ainda hoje, da noite de 4 de dezembro de 1980 e do momento em que teve conhecimento da notícia da morte do primeiro-ministro Sá Carneiro. No meu caso é diferente. Por mais que pesquise nas memórias de infância não encontro qualquer recordação de Raúl Durão a anunciar na RTP a queda do avião Cessna, nem da música clássica que a televisão passou ou da suspensão da telenovela D. Xepa. Contudo, lembro-me perfeitamente da manhã a seguir a Camarate. É a minha primeira recordação política. É também aquela que orientou muito do percurso que depois fiz como jornalista profissional.
Sexta-feira, dia 5 de Dezembro de 1980. Tinha oito anos feitos em agosto, logo andava na terceira classe. Na mesma turma, entre os amigos mais próximos cujos nomes ainda hoje me recordo, havia o Rogério, o Zé Maria e o Paulo. Este último não foi às aulas no dia 5 de dezembro de 1980. A escola era no Porto, na Rua de S. Dinis, e ainda hoje lá está. É o Centro de Bem Estar Infantil e Juvenil do Coração de Jesus, uma instituição religiosa, cujas professoras eram freiras. Não a frequentava por convicção religiosa, mas porque os avós moravam ali perto – o avô Cavacas tinha a barbearia na Rua António Enes e a casa de meus pais ficava na Prelada, perto do Carvalhido. Estava a crescer no Porto burguês do início dos anos 80, seis anos após a revolução em Lisboa. O meu amigo Paulo não foi à escola no dia a seguir a Camarate e ainda hoje me recordo porquê: ele era filho do capitão Passos, o piloto do avião da RAR que deveria ter transportado o primeiro-ministro de Lisboa ao Porto e levá-lo de volta à capital após o comício de apoio à candidatura à presidência de Soares Carneiro, previsto para a noite de 4 de Dezembro, no Coliseu do Porto.
O pai do Paulo não teve a oportunidade de voar nessa noite, pois à última hora os seus serviços foram dispensados e Sá Carneiro, juntamente com o ministro da Defesa, Amaro da Costa e acompanhantes, embarcou num Cessna cujo destino estava traçado. Recordo-me bem que na manhã de 5 de dezembro, na sala de aulas, rezámos uma “Avé Maria” pelo facto do pai do nosso colega não ter morrido em Camarate. A recordação ficou-me gravada. Enquanto cresci e quis ser jornalista, cada vez que alguém falava de Camarate, regressava à sala de aulas na Rua de S. Dinis e àquela “Avé Maria” pelo pai do Paulo.
Foi graças a essa recordação que nunca me deixei enganar pelos engodos que lançaram depois sobre o povo português. Ainda hoje há pessoas convencidas de que nunca teria sido possível um atentado contra Sá Carneiro, pois ele não deveria ter viajado para o Porto num avião privado, mas sim no avião comercial da TAP. Logo, não havia tempo para preparar um atentado contra o chefe do governo. Quando as evidências científicas começaram a sustentar as provas de um atentado, a versão oficial passou a defendeu que o crime seria contra o ministro da Defesa, esse sim, previsto para viajar no avião fatídico. Paulo Portas ainda há dias destacou esse facto. O motivo seria a investigação que Adelino andava a fazer a estranhos negócios de armas. Mas, eu sempre soube que não era bem assim, pois o pai do Paulo estava em Lisboa, com um avião privado e tinha como missão levar o primeiro-ministro ao Porto. Eu sabia que Sá Carneiro, um homem do Porto, estava previsto para viajar para a Invicta no avião privado da RAR, mas foi depois “desviado” para um aparelho menos seguro – embora do mesmo modelo do avião pilotado pelo pai do meu amigo.
Com o passar dos anos, fiz-me jornalista e dediquei-me a investigar aquilo que era a minha primeira recordação política. Sabia que a história do avião da TAP não era estava correta e, a haver atentado, o alvo poderia ser mesmo Sá Carneiro. Ele era um homem do Porto e, por isso, nunca deixaria de estar presente num comício extra na Invicta. Amaro da Costa, por sua vez, só decidiu ir ao Porto depois de ter tido conhecimento da deslocação de Sá Carneiro. Como o líder do CDS, Freitas do Amaral, estaria no comício de Setúbal ao lado do general Soares Carneiro, Amaro da Costa, número dois do CDS, tomou a decisão de regressar ao Porto pela segunda vez em dois dias – estivera no comício oficial do dia anterior – para acompanhar o líder do PSD. Dentro da lógica de um atentado, o alvo principal poderia ser perfeitamente o primeiro-ministro. Este facto, ainda hoje, é algo que não querem que os portugueses discutam. Mas, nunca me esqueci daquela “Avé Maria” no dia seguinte a Camarate. É mesmo a minha primeira recordação política.
Frederico Duarte Carvalho
Jornalista e escritor