Por representar uma prática que devia estar erradicada da nossa sociedade, o destino que o ministro da Defesa Nacional (MDN) tenciona dar ao Hospital Militar de Belém (HMB) deve ser motivo de preocupação para todos os portugueses. A alienação de património imobiliário público deve ser objeto de cuidada maturação, sobretudo quando se trata de áreas como a defesa e a saúde. Portugal tem vindo há décadas a descurar a criação de capacidades para enfrentar situações imprevistas, e a destruir as que existiam.
A retórica à volta das pandemias e das alterações climáticas não tem expressão na decisão política. As depauperadas Forças Armadas não dispõem de reservas de guerra. A recente crise epidémica causada pela Covid-19 bem o demonstrou. Faz todo o sentido que o Estado mantenha na sua posse património crítico para ocorrer a emergências resultantes de pandemias e alterações climáticas, entre outras.
A decisão do país de não dispor de um hospital público especializado em doenças infectocontagiosas é de uma insensatez que roça a insanidade. Não foi sem razão que o omnipresente e prolixo bastonário da Ordem dos médicos percebeu e alertou para o problema.
A transparência é outro aspeto a merecer consideração. O MDN prepara-se para ceder o HMB à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), sem explicar o modelo de negócio adotado, depois de ter gastado na sua reabilitação um valor que se tem recusado a divulgar. Podemos assistir novamente à venda ou cedência de património público ao “preço da chuva”, leia-se do HMB à SCML, como ocorreu com o Hospital Militar Principal, bem abaixo do valor de mercado, agora semanticamente suavizada na forma de uma parceria que inclui também a Câmara Municipal de Lisboa. Segundo declarações do MDN, o destino do HMB será a SCML para o exercício de cuidados continuados, sem especificar os termos em que isso ocorrerá.
Como é do conhecimento geral, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é altamente deficitário em cuidados continuados, valência cada vez mais necessária, onde se torna indispensável o reforço das capacidades e competências do Estado. Ao invés, é incompreensível que um dos partidos fundadores do SNS entregue património público a uma entidade privada (a SCML é uma entidade de Direito Privado, conforme consta dos seus estatutos.
As suas práticas de gestão não se regem, por exemplo, pelo código dos contratos públicos), para desenvolver uma atividade da sua competência e tão necessária ao país, com uma população cada vez mais envelhecida. Com esta decisão, o Estado não só está a renunciar às suas responsabilidades, como sentencia os mais pobres a um final de vida indigno.
A decisão de abdicar dessa responsabilidade é má, entregá-la sem mais nem menos à SCML é péssima. Porquê à SCML e não a outra entidade? Que competências técnicas em cuidados continuados tem a SCML que façam a diferença? Não se reconhece à SCML excelência na matéria que justifique um “ajuste direto”. Minorava-se o erro do outsourcing fazendo um concurso nacional ou mesmo internacional, dando oportunidade às entidades com provas dadas.
Abdicar de um concurso cedendo esse serviço à SCML sem explicar as razões dessa decisão pode levantar suspeitas de clientelismo político. Não basta ser sério, há que parecê-lo. O MDN tem recorrido frequentemente à consultadoria da antiga ministra da saúde Ana Jorge, que dirige uma unidade de cuidados integrados da SCML, no processo da reforma da saúde militar, o que coloca os dois numa situação delicada. Em política as perceções contam.
A ligeireza do tratamento do dossiê do HMB não se limita ao MDN. Alarga-se à Comissão Parlamentar de Defesa. Controlo democrático não se resume aos debates do primeiro-ministro com a oposição no plenário da Assembleia da República. Era conveniente que os deputados fizessem o trabalho de casa para colocarem ao ministro as perguntas certas, evitando retóricas ocas e inúteis, de quem não domina os dossiês.
A relevância do caso HMB e do assalto ao interesse público prende-se com outro aspeto de não menor importância, e que tem a ver com a forma como as entidades públicas se relacionam com os cidadãos. Um governo não deve visitar/inaugurar um hospital sem doentes, colocando camas no local apenas para as câmaras de televisão (retiradas após a saída das altas entidades). Não é com “golpes” desta natureza que os autores se credibilizam e se credibiliza o regime democrático.
É grande a nebulosa sobre o negócio associado à alienação do HMB. São muitas as dúvidas. Está por esclarecer o modelo de negócio, os valores, a maturidade da parceria, que tipo de parceria e contrapartidas. Quase tudo o que é importante saber. Parece, no entanto, não ser o único caso.
Situação semelhante ocorre com a transferência do Ministério da Defesa Nacional das atuais instalações para onde esteve aquartelado até há pouco tempo o Regimento de Lanceiros. Pouco se sabe sobre os contornos do negócio e da engenharia financeira que lhe está associada. Está igualmente por esclarecer a escandalosa aquisição de drones por ajuste direto, no valor de 4,5 milhões de euros, que não chegaram a ser entregues no prazo estipulado, nem desempenharam a sua função de reconhecimento e vigilância de incêndios.
Parece que o Tribunal de Contas encontrará aqui abundante matéria para exercer a sua ação fiscalizadora e de auditoria da utilização e gestão dos dinheiros públicos.