“São as moedas digitais centralizadas, e não a criptomoeda, o sistema monetário do futuro”,  Richard Turrin , autor de “Cashless” and “Innovation Lab Excellence”

A moeda digital está a ganhar terreno dentro do que é atualmente uma transição estrutural na forma como o mundo se está a relacionar com a economia, em virtude da introdução de um ciclo de enorme inovação ligado à denominada revolução Web3. Isto é, a tecnologia e segurança associada aos protocolos em blockchain ou DLT (distributed ledger tecnhology), que apresentam características únicas relativamente aos registos de transações e à inviolabilidade destes.

Não é nenhuma surpresa que, num momento em que o mundo está a avançar de forma acelerada para uma sociedade cada vez mais virtual, que também o dinheiro o esteja – e a chamada “tokenização” do mesmo é uma revolução. Sendo uma moeda programável, pode estar ligada à moeda convencional, e a sua tecnologia também pode estar centralizada com um governo. As criptomoedas já são bastante conhecidas – embora sejam mais vistas como ativos – mas as moedas digitais emitidas por bancos centrais são projetos ainda relativamente pouco discutidos pelo publico em geral, mas detêm um potencial gigantesco e verdadeiramente disruptivo.

Estão programadas versões digitais de moedas como o renminbi (China), rupia (Índia) a libra (Inglaterra) e euro (UE). Em conjunto, apenas estas versões representam mais de 50% da população global e 35% dos depósitos bancários globais. As expectativas de vários observadores, incluindo alguns bancos centrais, indicam que, durante a próxima década, cerca de 20% dos depósitos do mundo deverão estar associados a moedas digitais de bancos centrais (CBDC), representando aproximadamente cinco biliões de dólares, e influenciando cerca de dois mil milhões de utilizadores pelo mundo inteiro.

Afinal o que são as moedas digitais centralizadas?

As CBDC (Central Bank Digital Currency) são moedas digitais emitidas por um banco central, denominadas na unidade nacional de conta, representando uma responsabilidade do banco central. É esta característica – ser um passivo contabilístico de uma autoridade monetária – que diferencia, de forma distinta, esta de outras formas de pagamento digitais, como por exemplo um cartão Visa, onde a responsabilidade recai sobre balanço de uma instituição privada.

Também são diferentes das tradicionais criptomoedas, ou outras formas privadas de dinheiro digital, e têm vantagens sobre estas últimas que, geralmente, criam ciclos fechados nos quais os usuários não conseguem realizar transações com outros utilizadores, fora do sistema. A moeda digital centralizada também detém maior conversibilidade para diferentes formas de dinheiro. Uma moeda digital terá sempre ampla aceitabilidade numa economia de jurisdição do banco emitente como instrumento de pagamento interoperável, ou seja, entre vários ecossistemas de pagamentos.

Os bancos centrais acreditam nos benefícios das moedas digitais centralizadas

O desenvolvimento deste tipo de moeda (CBDC) encontra-se ainda num período inicial, e os países emergentes têm-se mostrado mais dispostos a abraçar este desafio. Mas, pouco a pouco, mais bancos centrais e de maior relevo estão cada vez mais a desenvolver e a percorrer este caminho.

De acordo com uma análise do Citi GPS, “The Future of Money” (abril 2021), em 2020 86% dos bancos centrais em todo o mundo estavam de alguma forma já envolvidos em trabalhos preliminares relacionados com o lançamento de uma moeda digital própria. E 60% dos bancos centrais estão a conduzir experiências ou provas de conceito, enquanto 14% estavam já em fase desenvolvimento, ou projeto piloto.

A China será o país mais avançado nesta frente, tendo lançado o seu programa de Pagamentos Eletrónicos em Moeda Digital em 2014, e um teste piloto em 2020.  Desde então, a adoção dos pagamentos por meios móveis passou de uma penetração de 25% em dezembro de 2013 para 87% em final de 2020, e espera-se que atinja o nível de adoção a 100% entre 2026 e 2027.

As principais vantagens que os bancos centrais encontram nisto podem sintetizar-se assim: i) melhora a eficácia da política monetária e da política fiscal; ii) evita a proliferação e os riscos associados à criação de moeda digital privada; iii) dinheiro digital emitido pelo Estado promove inclusão e universalidade; iv) reduz custos, melhora a eficiência nos pagamentos domésticos e constitui um incentivo à inovação das economias e do comércio digital;  vi) aumenta a capacidade de gestão dos riscos de crimes financeiros.

… Mas há também riscos associados e desafios a ultrapassar

Existe um incontornável mundo de oportunidades significativas oferecidas pelo dinheiro digital, e também existem implicações potenciais em torno de sua adoção por bancos e sistemas de pagamentos, moeda, regulação e políticas públicas. Desde logo, o facto de os bancos centrais concorrerem com privados, sendo que as moedas centralizadas (CBDC) poderão potencialmente aumentar a concorrência no setor de pagamentos de um país, levando eventualmente a um crowding-out dos operadores privados.

Depois, numa segunda frente de risco, existe a potencial perda de privacidade, com o risco de excesso de vigilância e perda de privacidade das transações dos cidadãos, que são frequentemente citadas como um risco e um dos principais obstáculos para a aceitação de uma moeda digital do banco central. O desafio passa, assim, por desenvolver formas de tornar os dados visíveis apenas para os intermediários financeiros, como bancos e empresas de pagamento terceirizadas, e não automaticamente aos bancos centrais.

Existem também riscos relevantes relativamente à erosão dos montantes em depósitos bancários. De acordo com uma análise produzida pelo Banco da Inglaterra, cerca de 20% dos depósitos bancários das famílias e empresas podem ser transferíveis para estes novos formatos de dinheiro digital – e, consequentemente, deixar os bancos que podem ser então forçados a substituir o dinheiro de depósito perdido por financiamento mais caro, o que por sua vez origina custos mais elevados para clientes que procuram crédito bancário.

No limite, acentuadas desintermediações dos bancos por esta via podem, também, afetar a transmissão eficiente da política monetária. Neste campo, alguns projetos de bancos centrais estão a ponderar definir limites por pessoa a utilizar em moeda digital – no caso da União Europeia, por exemplo, está-se a considerar um valor máximo de três mil euros.

Por último, há também questões relacionadas com a literacia digital, que podem levar a uma menor adoção da moeda digital, e que dependerá de país para país – um esforço de aumento da literacia e das condições de infraestrutura digital serão temas incontornáveis para aumentar a adoção da moeda centralizada.

‘Bottoms’ up’: a UE está a terminar fase de análise do euro digital

A transição para um modelo de moeda digital centralizada parece inevitável, apesar dos obstáculos. Na Europa, também o Banco Central Europeu (BCE) está a trabalhar na introdução do euro digital. O lançamento de uma CBDC na Europa tem, como fundamentos principais, criar uma solução para o crescente aumento da procura por pagamentos digitais seguros. Ora, ter dinheiro digital emitido pelo BCE pode representar um pilar de estabilidade para os sistemas monetário e de pagamentos, assim como criar uma forte soberania monetária na área da UE.

O calendário aponta para que no último trimestre deste ano seja finalizada a fase de análise e de investigação dos principais pressupostos do euro digital. A partir daí, e num período de três anos, o euro digital entrará na fase de construção, e é possível que em 2026 estejamos na fase de lançamento da moeda digital única europeia. A partir daí, a forma como interagimos até hoje com a moeda em sociedade e com a economia tradicional poderá mudar por completo.