Nos estudos que desenvolvi sobre as transformações e recomposições sociais no mundo rural um dos tópicos abordados foi o da mobilidade residencial, no sentido de perceber se as pessoas desejavam mudar para outro lugar[i].

No decorrer da pesquisa de terreno e da aplicação do inquérito sociológico numa aldeia alentejana, quando confrontados com a pergunta muitas das pessoas mais idosas respondiam invariavelmente da mesma maneira irónica: “olhe, a minha próxima morada vai ser ali”. Ao mesmo tempo que respondiam apontavam para o sítio onde se localizava o cemitério da freguesia. Este encontra-se num nível um pouco mais alto e pode ser visto a partir de vários pontos da aldeia. Paradoxalmente, era com uma certa sensação de conforto que expressavam esta certeza, como se no fundo continuassem a viver na aldeia mesmo depois de já terem partido.

O lugar da morte encontrava-se a uma centena de metros do lugar da vida e da comunidade, vividos como espaços ligados tanto nas relações e nos rituais que se estabelecem no quotidiano como nas crenças e significados simbólicos constantemente reatualizados. Utilizando um conceito inspirado em Karl Polanyi[ii], podemos dizer que a vivência da morte (de um familiar, amigo ou conhecido) estava incrustada na vida social de todos os dias.

Contudo, como refere João de Pina-Cabral no seu livro “Filhos de Adão, Filhas de Eva”, que resultou de um estudo etnográfico sobre a visão camponesa do mundo em duas aldeias do Alto Minho[iii], a existência e a construção dos cemitérios é uma realidade relativamente recente em muitas freguesias rurais, remontando à segunda metade do século XIX e, em alguns casos, ao início do século XX. Até essa altura os mortos eram sepultados, envoltos em mortalhas, no interior das igrejas ou nos adros, conforme o estatuto social. Eram enterrados no interior das próprias aldeias e vilas, estabelecendo-se assim um entrelaçamento espacial entre o mundo dos mortos e o dos vivos.

Neste sentido, a construção do cemitério representa uma primeira separação, ainda que em contiguidade, entre os dois mundos. É o primeiro passo para um processo de desincrustação que se vai acentuar ao longo do século XX. Todavia, como se referiu no início deste texto, a proximidade geográfica do cemitério simbolizava, entre vários aspetos, o conforto da familiaridade da última morada. Assim, apesar da incerteza sobre a chegada da morte, que pode chegar mais cedo ou mais tarde, o seu lugar estava previamente predestinado e naturalmente contextualizado na vida partilhada com os familiares e vizinhos.

Como indica Pina-Cabral, no referido livro, os primeiros rituais que se seguiam ao falecimento de um aldeão associavam-se a práticas que remetiam para a noção de abertura: “depois de qualquer tipo de morte, todos os portões e portas da casa do falecido são imediatamente abertos de par em par, permitindo a entrada de quem o desejar” (p. 248). A casa privada transformava-se assim, ao longo do velório e funeral, num espaço público e aberto a todos.

Além de outras dimensões simbólicas, relacionadas com crenças religiosas, que a ideia de abertura das janelas e portas acarreta, a vivência da morte significava um momento de reforço da vida em comunidade onde “velhas animosidades e disputas são temporariamente esquecidas” (p. 248). Como se o momento da morte maximizasse a pertença a um coletivo e ao sentido de (re)ligamento a um comum e, por sua vez, minimizasse as divisões sociais e pessoais.

Os velórios eram também momentos de comunhão de memórias e de histórias contadas e recontadas sobre eventos e episódios marcantes da biografia do falecido ou da falecida. Não raras vezes se recordavam situações mais ou menos emblemáticas, e até caricatas, quase em tom de anedota acompanhadas por risos que se entreteciam com choros e rezas. Embora todas as culturas tradicionais se caraterizem por crenças e rituais específicos, que obviamente não cabe aqui inventariar, podem identificar-se traços transversais que remetiam (e ainda remetem) para essa vivência do comum onde a morte se incrustava nos quotidianos das comunidades locais.

A desincrustação da morte

A urbanização e a modernização das sociedades aliadas aos tremendos avanços tecnológicos em diversas áreas, incluindo na saúde, e às formas complexas de organização e de institucionalização dos sistemas de redistribuição e de bem-estar social, provocaram relevantes alterações na maneira como a morte passou ser enquadrada nas instituições e vivenciada nos quotidianos.

Num artigo recente publicado neste jornal, inserido numa série intitulada “Soberanos do Tempo” (em coautoria com André Barata), retoma-se a análise crítica do sociólogo Hermínio Martins que no capítulo inicial do livro intitulado “A Morte no Portugal Contemporâneo”[iv] discorre sobre o modo como a morte é enquadrada no mundo ocidental e nas economias capitalistas.

Um dos aspetos mais preponderantes objetiva-se na crescente hospitalização e medicalização da morte mediada por um aparato burocrático administrativo cada vez mais totalizante e formatador, no que diz respeito ao acionamento de um sem número de regras impessoais altamente padronizadas. A medicalização extravasa o âmbito do saber médico e da prática da medicina, tão necessários e fundamentais para uma maior garantia do bem-estar de saúde, e expande-se a quase todas as esferas do mundo social, como se o colonizasse por intermédio da estipulação e imposição de procedimentos, formulários, certificados, certidões, etc.

Uma das consequências da expansão da medicalização revela-se assim na desritualização da morte e no empobrecimento das práticas e das representações simbólicas. A morte foi-se afastando da proximidade relacional e deslocou-se para a alçada do aparato institucional e técnico-burocrático crescentemente uniformizador e, de certa maneira, coercivo, no qual é dada cada vez menor a margem à manifestação das singularidades sociais e culturais que envolvem as pessoas falecidas e os seus familiares e amigos.

A institucionalização e hospitalização da morte e a consequente expansão do aparato tecno-burocrático na organização da vida social desincrustou definitivamente a morte dos rituais e dos quadros habituais de interação. Por exemplo, deixou de haver direito ao espaço próprio e adequado para abrir as portas e janelas a todos os que queiram entrar e comungar o sentimento da perda de alguém que partiu recentemente.

Os rituais empobreceram ao mesmo tempo que se amplificaram os mecanismos de mercadorização em torno da morte. Na verdade, gerou-se um enorme mercado alimentado por uma indústria composta por agências funerárias, mediadores, solicitadores, aconselhadores. Assim que fecha os olhos, o falecido transforma-se instantaneamente num peso burocrático para os familiares e numa mercadoria para uma série de agentes económicos e financeiros que dinamizam toda esta indústria. Dito de forma mais categórica, a morte desincrustou-se da ritualidade relacional e do simbólico e foi tomada e colonizada por um enorme aparato técnico-burocrático e mercantilizado do qual ninguém consegue escapar.

A desritualização significa, simultaneamente, uma perda de soberania sobre os usos do tempo e do espaço. A formatação e formalização dos procedimentos empurram-nos para espacialidades descontextualizadas dos nossos quotidianos, sítios que não nos são familiares, que encaramos quase como não-lugares, e por onde se estabelecem itinerários predefinidos onde desaguam os velórios e os funerais, presos a horários e cronogramas rígidos e inflexíveis. A morte não só se arreda da proximidade social e pessoal como se afasta do humano. Transforma-se numa coisa que urge regulamentar, vender, comprar, publicitar, enfim, industrializar.

O tremendo impacto da pandemia de Covid-19 no funcionamento e organização das sociedades provocou uma aceleração e uma radicalização dos processos de desincrustação e de mercadorização nos mais variados setores e atividades. Na esfera da morte assistiu-se a uma intensificação das tendências de medicalização e de higienização sanitária com implicações ainda mais brutais nas formas de desritualização e de mediação das relações sociais. A proximidade física e social passou a ser necessariamente encarada como de alto risco no que respeita ao potencial aumento de contágios. As relações tornaram-se quase asséticas e afastaram-se da contiguidade e da ligação corporal, dos abraços, beijos, odores, lágrimas. Deu-se um enclausuramento generalizado dos gestos de afetividade, contidos e escondidos nos bastidores isolados em cada indivíduo.

A clausura da gestualidade e a impossibilidade de acompanhar em proximidade o ente querido nos últimos dias da sua vida, representam experiências avassaladoras e difíceis de qualificar que afetaram e continuam a afetar muita gente, demasiada gente. Ao mesmo tempo, os rituais já de si empobrecidos de simbólico reduziram-se ao mínimo e ao literal. Corpos selados, urnas trancadas, expressões contidas, abraços impedidos, rituais esvaziados… a vivência da morte levada a uma desumanização quase absoluta.

Mercadoria fictícia

No seu livro intitulado “A Grande Transformação”, Polanyi refere que a crescente liberalização e mercantilização das economias e das sociedades se deveu a um processo de transmutação artificial de um conjunto de elementos que não foram inicialmente criados e gerados para serem mercadorias, mas que com a industrialização e a ascensão da economia de mercado se mercantilizaram afetando por esta via a coesão da vida coletiva das comunidades. O economista político refere-se ao trabalho, à natureza e à moeda como mercadorias fictícias, no sentido em que a sua essência e o seu valor intrínseco inicial não advêm de uma relação direta com as dinâmicas do mercado.

Alguns autores, como Michael Burawoy, têm questionado até que ponto estes processos de mercadorização estão a afetar outros elementos que também não foram gerados para serem comprados e vendidos enquanto mercadorias. A este respeito o sociólogo americano considera a produção de conhecimento como um dos elementos que se encontra numa fase acentuada de mercadorização por intermédio, designadamente, da economia das patentes e da financeirização das atividades de investigação e dos produtos científicos.

Nesta linha, podemos argumentar que os processos acentuados de desincrustação e de mercadorização na esfera da morte podem indiciar que, paradoxalmente, esta está a transformar-se numa mercadoria fictícia crescentemente afastada das comunidades e das suas ritualidades e, concomitantemente, mais conectada às lógicas do mercado. A presente pandemia radicalizou tendências anteriores e induziu uma mudança profunda no modo como as sociedades enquadram e vivem a morte. Esta pode perder irremediavelmente o sentido do simbólico e da vivência do comum, relativamente ao que acontecida nas  sociedades mais tradicionais. Contudo, esta perda não deve ser vista como inevitável.

Assim, de maneira a finalizar este texto num tom menos negativo diria que num próximo contexto de recuperação económica e social é importante que se empreenda o des-ficcionar dos processos referidos de maneira a abrir espaço e tempo ao ressurgimento do simbólico, assim como, das ritualidades e das gestualidades de proximidade associadas à vivência da morte.

Este ressurgimento não significa um regresso às práticas tradicionais e conservadoras ancoradas nas mais ou menos idílicas comunidades rurais. Mas pode significar a abertura à reinvenção social permitindo que cada pessoa, cada família, cada grupo social consiga imaginar e apropriar-se de um sentido específico do simbólico e do aprofundamento de relações humanas perante a morte.

Pode também significar que a institucionalização e a hospitalização da morte não representem obrigatoriamente o fechamento das portas e das janelas e permitam àqueles que queiram entrar, para partilhar da dor e acompanhar o falecido até à última morada, o possam fazer sem limites nem constrangimentos. Uma sociedade decente não é compaginável com as formas dominantes de desincrustação e de mercantilização da morte. O des-ficcionar desta suposta inevitabilidade é um caminho a percorrer e a ser concretizado nas instituições e nas comunidades por todos nós que nos vamos mantendo vivos.

 

[i] Renato Miguel do Carmo (2007). De Aldeia a Subúrbio: Trinta Anos de uma Comunidade Alentejana. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

[ii] Karl Polanyi (2012 [1944]). A Grande Transformação. Lisboa: Edições 70.

[iii] João  de Pina-Cabral (1989). Filhos de Adão, Filhas de Eva: Uma Visão do Mundo Camponesa no Alto Minho. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

[iv] Rui G. Feijó, Hermínio Martins, e João de Pina-Cabral (1985). A Morte no Portugal Contemporâneo: Aproximações Sociológicas, Literárias e Históricas. Lisboa: Editorial Querco.