“O inverno está à porta, e todos sabemos o que está por vir” – Jon Snow, Guerra dos Tronos

E de repente tudo mudou. Durante um período indeterminado e prolongado, as economias desenvolvidas vão ficar em suspenso, confinando centenas de milhões de pessoas em casa, no que se pode considerar a maior quarentena da história da humanidade.

A pandemia do novel surto de coronavírus (Covid-19) parece encontrar apenas um comparável recente na gripe espanhola, que precedeu o período posterior ao final da Primeira Guerra Mundial (entre 1918 e 1920), e as exigências que poderá exigir à sociedade enquanto persistir deverão criar elevados desafios numa série de frentes, seja ao nível social, na forma como os países, instituições e cidadãos interagem entre si ou ao nível dos hábitos e costumes de cada indivíduo, seja ao nível das economias, na forma como a cadeia de produção irá sobreviver durante este período, ou, mais importante ainda, na forma como nos iremos adaptar a esta realidade que marcará também uma mudança significativa no mercado de trabalho.

As respostas a estas exigências de âmbito económico deverão assentar em larga medida numa acelerada implementação de soluções disruptivas, onde a automação e evolução digital deverão imperar como solução incontornável.

O impacte pode ser mais duradouro que o próprio período da quarentena

Não existe neste momento qualquer visibilidade sobre o tempo que poderá levar a desenvolver uma vacina que possa ser considerada eficaz, e produzida em tempo útil, para conter rapidamente o surto, a qual exigiria adicionalmente bastante tempo de produção e implementação. Apesar de muitos laboratórios estarem envolvidos no desenvolvimento da mesma, muitos especialistas consideram que pode levar entre um ano a ano e meio a produzir uma solução viável e robusta de vacinação. É provável que durante este período surjam tratamentos que consigam ajudar a mitigar a severidade das situações mais graves, mas isso não será suficiente para garantir o fim das atuais restrições à mobilidade dos cidadãos.

Adicionalmente, existem restrições relacionadas com a infraestrutura médica que não se podem considerar de fácil resolução. Muito do apoio associado a reduzidas taxas de mortalidade está dependente da capacidade instalada em termos de equipamentos (como é o caso das camas preparadas para cuidados intensivos, com ventiladores de suporte), e dos recursos humanos, ou seja, no que diz respeito a profissionais especializados na área da saúde (médicos ou enfermeiros) e também aos restantes quadros de suporte não especializados nesta área.

As situações de rutura hospitalar num curto espaço de tempo têm sido dramáticas, e isso tem levado os gabinetes de crise a utilizar as medidas de quarentena e isolamento como forma de “achatar” a curva de casos positivos para o vírus. Estratégia que permite evitar o colapso do sistema de saúde, porque a propagação da transmissão é mais lenta, ainda que crie um inevitável prolongamento no tempo da epidemia.

Por último, mesmo depois de atingida a fase de contágio reduzido, gerir o processo de regresso à normalidade vai exigir restrições, de forma a evitar o reacender do surto para uma segunda vaga. Isto poderá adicionar mais algum tempo de impacte após a dispensa de medidas mais restritivas.

A importância de voltar rapidamente ao trabalho

Com todas as consequências que isso implica, a verdade é que as medidas de restrição de mobilidade serão maiores quanto mais frágeis forem as infraestruturas de cada país, , sendo que aqueles que tiverem maior capacidade de resposta médica, i.e. os que possam testar um maior número de potenciais infetados e gerir uma curva menos achatada, serão também aqueles que irão regressar mais rapidamente “ao trabalho”.

Colocam-se importantes e difíceis exercícios de equilíbrio em vários domínios. Uma prolongada quarentena do mundo pode criar problemas que podem perdurar para além da esfera sanitária, uma vez que os Estados não terão uma capacidade de resposta eterna para o aumento exponencial do desemprego. Mas esta resposta dos Estados é essencial para manter as pessoas em quarentena não apenas pelas razões de controlo da doença, mas também para evitar situações de rotura na sociedade, causada pelo fortíssimo impacte económico que o prolongamento das restrições pode causar no circuito produtivo.

Há, pois, uma clara emergência em termos da estratégia de saída a implementar pelo tecido produtivo, quando confrontado com as restrições do tempo prolongado e necessário para lidar com a questão sanitária e com as restrições orçamentais dos governos e bancos centrais para suportar fiscal e monetariamente, e durante tempo indeterminado, os impactos do “shutdown” do tecido produtivo.

Cada país será um caso específico dependendo da estrutura médica e hospitalar, mas a situação tornar-se-á mais complexa quanto maior for a exposição da economia local aos mercados externos, e sobretudo a áreas que dependam do regresso à normalidade a uma escala global no que diz respeito à mobilidade de pessoas, como é o caso do sector do turismo – que é o caso da Europa, e sobretudo de Portugal.

A massificação da tecnologia como forma de contornar as restrições de curto prazo

As condições de incerteza sobre o tempo que vai ser necessário para devolver o circuito económico ao normal – que poderá ser superior a um ano – cria um incentivo sistémico para a massificação das tecnologias aplicadas em várias frentes, quer no sentido de reduzir drasticamente a necessidade de utilização de recursos humanos na produção industrial, comercial e agrícola por insuficiência de pessoal disponível, quer também na aposta disruptiva em soluções que permitam a massificação do negócio online, que poderá definitivamente transformar-se no novo padrão de consumo global.

Por outro lado, existem sectores nos quais o desenvolvimento das ferramentas de teletrabalho poderá tornar-se uma forma das empresas reduzirem custos significativos com encargos de estrutura, como as rendas de escritórios em zonas dispendiosas das cidades, enquanto permanecerem as restrições de mobilidade. Outro exemplo prende-se com os profissionais liberais e pequenos negócios que venham a procurar oportunidades nas plataformas internacionais de concursos, as quais poderão registar um aumento de ofertas de projetos (obviamente dependendo da área) em consonância com a migração da cadeia produtiva para este canal digital.

Incentivos para a migração tecnológica e adaptação da legislação podem ser fundamentais

A automação e digitalização da sociedade na economia e mercado de trabalho era uma tendência de uma década, mas a conjuntura atual poderá acelerar a nova era da automação, à medida que as grandes empresas digitais e tecnológicas disponibilizam as soluções técnicas, e as empresas da economia tradicional correm contra o tempo para se adaptar à atual incerteza, que não terá um fim à vista imediato.

Obviamente, esta é uma mutação que tem dois lados, porque a transformação disruptiva das economias exigirá elevada capacidade de adaptação por parte dos indivíduos, a fim de ser bem-sucedida. Apesar dos receios, a introdução de tecnologia tem sido historicamente indutora de geração de empregos – por exemplo, nos anos 80 do século passado, a introdução dos computadores (PC) nas empresas, que era vista como ameaça,  acabou por ser criadora líquida de empregos (relatório da Mckinsey de 2018), cerca de 18 milhões de postos de trabalho. Adicionalmente, cria indústrias novas, e à medida que vão deixando as tecnologias existentes obsoletas, vão originando novas oportunidades e novos postos de trabalho. Ou seja, a nova tecnologia destrói empregos, mas não trabalho.

Contudo, esta transição pode ser dolorosa se não for enquadrada, porque exige capacidade de adaptação por parte dos trabalhadores. A automação e transição digital não é um evento negligenciável, pelo que deverá ser alvo de atenção não apenas dos decisores políticos, mas também dos reguladores, que terão de desenvolver soluções que dotem as empresas de maior eficiência produtiva, mas que sejam imbuídas de responsabilidade social, ajudando a promover uma transição suave para as franjas mais fragilizadas de trabalhadores.

‘Bottoms up’: a transição tecnológica pode tornar-se definitiva

O mundo pode estar perante a maior mudança disruptiva depois da Segunda Guerra Mundial. A nível das instituições muito poderá mudar, sobretudo no que respeita à forma como vai decorrer a resposta ao surto numa primeira fase, mas mais importante ainda, sobre a preparação para um longo inverno das economias.

Há também uma colisão de interesses entre as estratégias implementadas para controlar a pandemia da Covid-19 e as estratégias necessárias para evitar uma aguda recessão económica e grave desagregação social. Os equilíbrios entre tempo de quarentena obrigatória para “achatar a curva” dos casos positivos ajustando à capacidade médica instalada, e a rapidez necessária para o restabelecimento do aparelho produtivo serão complexos de gerir. Os governos e instituições internacionais têm capacidade para comprar algum tempo, mas capacidade limitada para manter indefinidamente o estado atual.

A transição imediata para uma economia digital poderá trazer benefícios a curto prazo, criando maior resiliência financeira para as empresas, e poderá tornar-se definitiva, dado o investimento que pode exigir e a materialização do potencial associado. Isto irá implicar uma transição do mercado de trabalho, que não será isenta de impacte, mas que poderá ajudar a mitigar o impacto nas economias tradicionais, sobretudo em sectores onde essas tecnologias já existem (ex: financeiro, retalho, saúde).

Os Estados deverão responder legislando e incentivando esta migração no mercado de trabalho, como parte da resposta ao potencial desmantelamento da economia tradicional num cenário de prolongado período de “shutdown” das economias. No meio da crise, esta poderá bem ser a oportunidade de transformação estrutural das economias, sobretudo em economias de elevada abertura ao exterior e sensíveis a sectores cíclicos, como é o caso de Portugal.