Uma das grandes conquistas das democracias ocidentais foi o direito à privacidade. Felizmente, a minha geração nasceu numa época em que as paredes já não tinham ouvidos, em que a intimidade das pessoas não era devassada por polícias e políticas de “bons costumes” e em que dentro de quatro paredes podemos ser o que quisermos.
A euforia da conquista da privacidade nos anos 70/80 do século passado tem vindo a ser mitigada por vários fenómenos que a têm comprimido. E se alguns parecem aceitáveis, outros fazem-nos retroceder perigosamente na história.
Primeiro foi o terrorismo do século XXI que fez renascer alguns procedimentos mais securitários dos Estados; depois, sob o pretexto de combate à criminalidade económica, por “tuta e meia” vulgarizou-se o recurso a vigias, escutas telefónicas e a quebra dos mais variados sigilos. Até no campo fiscal, cada vez que colocamos o NIF numa fatura, oferecemos a um qualquer funcionário do fisco (que nem conhecemos) informação sobre o nosso dia a dia.
Noutro campo, o apogeu da liberdade de imprensa sem limites, passou a permitir o recurso, por exemplo, a paparazzi que, como autênticos snipers, passaram a perseguir “estrelas” e a expor ao mundo a sua intimidade. Mais recentemente, com a generalização das redes sociais, das comunicações eletrónicas e dos smartphones, cada um de nós é um potencial paparazzi de outros e de si próprio. Pelos vistos, é o cidadão comum que deseja abdicar da sua intimidade e tem um claro fetiche pela dos outros. Para além disso, ainda temos os novos fenómenos de “terrorismo” cibernético que procuram através da devassa eletrónica prosseguir determinadas agendas.
Como se não bastasse o extremismo a que chegámos na compressão do direito à privacidade, vemos agora juntar-se um conceito que, segundo algumas tendências vigentes, permite a divulgação e publicitação generalizada da devassa: o interesse público.
Confesso que acho arrepiante a forma como o conceito de interesse público tem vindo a ser alegado para divulgação, por exemplo de emails, escutas telefónicas, fotografias íntimas e até de interrogatórios judiciais prestados num contexto exclusivamente processual. No fundo, a invocação do interesse público deixou de ser um privilégio das instituições próprias do Estado para passar a estar na arbitrariedade de qualquer cidadão, de qualquer jornalista ou blogger e ao sabor das mais diversas agendas e estratégias. Isto é inaceitável.
Estamos perigosamente a vulgarizar a devassa, quer através dos Estados, quer entre os próprios privados. Para justificar o injustificável, cada vez mais ouvimos a expressão “quem não deve não teme” e “não tenho nada a esconder”. No entanto, parece-me que mesmo os que não devem têm cada vez mais a temer.
Os recentes exemplos tornados públicos de fragilidade no tratamento dos dados pessoais, exigem que os Estados democráticos estejam à altura e deem o exemplo no respeito pelo direito fundamental à privacidade. Não há interesse público maior do que o de garantir que a privacidade não é nacionalizada como se fosse um direito de todos usufruir da intimidade de cada um.