Quem pensa que as consequências económicas da guerra na Ucrânia se limitam ao curto prazo e às sanções à Rússia durarem alguns anos mais, com forte probabilidade está muito enganado. Vão seguir-se as tentativas de alguns países, particularmente os autocráticos, reconstruirem a ordem internacional numa base diferente, para si mais favorável, ao mesmo tempo que expôs a vulnerabilidade do modelo de organização da produção e das trocas internacionais.
E vai levar de novo a um mundo bipolar, pondo termo ao movimento na direção do multilateralismo que se vinha desenhando – e se acentuou com Trump –, só que com um segundo polo diferente, pois será a China a ocupar esta posição, pela dinâmica de décadas e pelo enfraquecimento da Rússia que resultará da guerra, outro erro de cálculo de Putin.
No fundo, para ele a Ucrânia constituía uma espécie de prova de vida, mostrar que a Rússia ainda era a segunda potência mundial, mas o tiro saiu-lhe pela culatra; mesmo “conquistando” a Ucrânia, não deixarão de ficar grandes dúvidas até sobre a sua capacidade militar. O afundar pelos ucranianos do “Moscovo”, o navio almirante da frota do Mar Negro, foi particularmente humilhante, pelo feito em si e pelo simbolismo do nome.
Um mundo em redesenho
No seguimento da Segunda Guerra Mundial e com a criação das instituições de Bretton Woods a economia internacional entrou numa nova fase, com uma clara liderança dos EUA. O dólar tornou-se de facto a moeda de reserva a ponto de nos anos 60 Giscard d’Estaing, na altura Ministro das Finanças, se lhe referir como o “exorbitante privilégio”, pois os EUA podiam financiar qualquer défice nas suas transações com o resto do mundo simplesmente emitindo dólares – citando Eichengreen, custa cêntimos ao Tesouro americano fazer uma nota de 100 dólares, mas os outros países têm que entregar 100 dólares em bens para a obter.
Isto para além do rendimento de seigniorage – a inflação nos EUA diminui o valor (poder aquisitivo) dos dólares detidos por residentes e não residentes, ou seja, a inflação funciona como um imposto, pago por nacionais e estrangeiros. Outros custos têm que ver com os objetivos cambiais e de inflação do país, que podem tornar necessário esterilizar os movimentos de reservas resultantes das transações com o exterior, e com a vulnerabilidade acrescida a choques externos.
As instituições de Bretton Woods foram desenhadas para auxiliar na resolução de problemas temporários de balança de pagamentos e ajustamento macroeconómico e para financiar o desenvolvimento económico a custo reduzido. No entanto, as crises pelas quais a economia mundial passou (América Latina nos anos 80, Ásia nos anos 90, crise financeira dos anos 2000) mostraram os custos de a elas recorrer – particularmente ao FMI, com a adoção de políticas de austeridade.
Assim, a procura de reservas (dólar) aumentou ao longo do tempo, até pelo mero motivo precaução, e a liquidez necessária foi fornecida pelos défices das trocas americanas com o exterior, juntando o útil ao agradável para os EUA. O processo de globalização e as deslocalizações produtivas acentuaram a interdependência económica e constituíram o pano de fundo desta evolução.
Mas esta situação tem vindo a mudar. Os EUA representavam 40% do produto mundial em 1960, mas estão reduzidos a pouco mais de metade em 2019; no mesmo período a China, por exemplo, passou de 4% para mais de 16%. O peso das exportações americanas caiu também, de mais de 11% em 1980 para 8,5% em 2019; nos anos 60 a China representava menos de 1% das exportações mundiais, para se situar acima dos 13% em 2019. E o peso dos 7 principais países emergentes (BRICS, Indonésia e México) na economia mundial é superior ao do G7.
Olhando para o futuro, o panorama não é melhor: conta Yasmin Tadjdeh, na “National Defense” de março, que a China representa 29% do aumento da despesa em R&D entre 2000 e 2019, contra 23% dos EUA, e que a parte dos EUA em patentes internacionais registadas no USPTO caiu de 15% para 10% entre 2010 e 2020, enquanto a da China aumentou de 16% para 49% (“Science and Engineering Indicators, report to the President and Congress”, National Science Board, março de 2022). O desafio à liderança está lançado.
O processo de mudança acelerou-se com a America First de Trump, que de facto contribuiu para o isolamento dos EUA na cena internacional (vejam-se os episódios da Parceria Transpacífica, do financiamento da NATO, dos acordos sobre o clima, da OMS, do acordo nuclear com o Irão) e pôs em causa 70 anos de diplomacia americana e a estabilidade da ordem internacional, para não falar da segurança dos próprios EUA, criando o que George Will batizou, relembrando as palavras de Gerald Ford em 1974, “national nightmare 2.0”.
Já chegámos à Ucrânia
Uma Rússia enfraquecida, em progressiva queda, uma contestação interna visível, sem ser capaz de criar uma base económica sólida, vivendo da exportação de matérias-primas nem sequer transformadas, e ele próprio contagiado pelo Síndroma de Hubris, Putin resolve deixar a sua marca na História – sem se preocupar se seria pelas boas ou más razões.
Anexa a Crimeia, à moda do Anschluss, e, oito anos depois, invade a Ucrânia, certo que, como a Polónia de 39, o país cairia em poucos dias e não haveria reação significativa, como não houve na Crimeia. Estava duplamente errado. Mas teve de facto um mérito: uniu o mundo ocidental como não se via desde as épocas áureas da Comunidade Económica Europeia e da parceria atlântica – com, claro, a única dissensão de Viktor Orbán e o we shouldn’t get involved.
A situação é conhecida. A Rússia foi criticada nas Nações Unidas (apenas cinco países votaram contra) e foi alvo por parte dos países ocidentais das sanções económicas mais duras dos tempos recentes. Entre estas contam-se as proibições de exportações de bens duais (podem ter utilização militar), dos voos de e para a Rússia, de bens de luxo (incluindo veículos e arte), de importações de petróleo e gás russos (imediata pelos EUA, até final do ano pelo Reino Unido, até antes de 2030 pela UE) e de investimento na Rússia, a suspensão da certificação do pipeline de gás Nord Stream 2 (isto é, a sua inutilidade prática), o congelamento dos ativos do banco central russo (um volume potencial de reserva de 630 mil milhões de dólares) e dos ativos dos bancos comerciais russos, além da exclusão dos bancos russos do sistema Swift. Foram também impostas sanções sobre indivíduos, designadamente congelamentos de contas.
Isto de facto isolou a economia russa, cujas exportações significativas estão praticamente reduzidas à energia, e pôs os bancos russos fora do sistema financeiro internacional. A bolsa de Moscovo fechou, tendo reaberto apenas um mês depois, a 24 de março, como um “mercado Potemkin” – apenas 33 títulos e durante quatro horas e dez minutos, com o banco central a anunciar que proibiria o short selling e o Governo a instruir o seu fundo soberano a adquirir dez mil milhões de dólares de títulos. As sanções têm um objetivo primário claro, demover a Rússia de ocupar a Ucrânia, e um objetivo secundário não confesso de afastar Putin do poder (o “for God’s sake, this man cannot remain in power”, a gaffe de Biden em Varsóvia). Porém, as suas consequências de longo prazo estão ainda por ver.
‘Looking ahead’
A invasão da Ucrânia tornou evidente para os países da União e para os EUA que é perigoso depender de terceiros – rivais – para o abastecimento em bens essenciais e o escoamento de produtos. E mostrou o quanto são estratégicas as cadeias de fornecimentos dos seus sistemas produtivos.
Mas as sanções tornaram evidente para a China que os seus objetivos de longo prazo passam pelo decoupling da sua economia do sistema construído pelos países ocidentais. E nesse sentido é seu interesse que o conflito na Ucrânia dure, o que lhe deixa as mãos livres para melhor alastrar a sua influência na Ásia e na África – o “quando dois lutam, o terceiro ganha” de Churchill. Daí a sua posição dúbia sobre a guerra: criticando a guerra, abstendo-se nas votações nas Nações Unidas, e recebendo Lavrov de braços abertos em Beijing.
A dívida chinesa é de mais de 250% do PIB, inferior à do Japão, mas superior à dos EUA; desta, mais de 200% é dívida privada, o que a torna mais difícil de gerir, e isto num contexto de envelhecimento e redução da população. Não é, portanto, do interesse da China desestabilizar o sistema financeiro internacional, o que só ajuda a perceber a prudência da sua atual posição. Aliás, no dia em que correu o rumor que a Rússia tinha pedido assistência económica e militar à China a bolsa chinesa teve a maior queda desde 2008.
Mas a exclusão da Rússia do sistema financeiro internacional e as dificuldades económicas a que foi sujeita mostram os riscos a que a China está sujeita e a necessidade de criar um polo alternativo na economia mundial – situação que ficou igualmente clara para potenciais parceiros com peso, como a Índia ou o Brasil. Esta preocupação não data de hoje. A Declaração Conjunta para um Mundo Multipolar e uma Nova Ordem Internacional de 1997, entre a China e Rússia, já tinha precisamente este objetivo, e a relação entre Rússia e China tem tido como linha marcante a oposição à hegemonia americana, como o ilustra a Parceria sem Limites.
As recentes conversas entre chineses e sauditas para que o petróleo seja comprado (e denominado) pela China em yuans são outro passo, se bem que a aspiração a que o yuan seja moeda de reserva obriga a que primeiro esta moeda seja perfeitamente convertível – amanhã não será a véspera desse dia, mas o caminho faz-se caminhando. E não é o rublo que pode aspirar a tal, vai uma diferença de um para dez entre as duas economias. Um sinal avançado será o dia em que a China começar a reduzir substancialmente as suas reservas em dólares.
A globalização, como a conhecemos, será a próxima vítima da guerra da Ucrânia, e vai ser revertido boa parte do que foi conquistado nas últimas décadas – as trocas internacionais em percentagem do PIB mundial passaram de 25% em 1970 para 61% em 2008; o investimento direto estrangeiro aumentou seis vezes nos anos 90; as exportações de bens da China para os EUA aumentaram 125 vezes entre 1985 e 2015.
Estamos a entrar num mundo em que as considerações políticas se sobrepõem à lógica económica da eficiência e do menor custo, num mundo em que as cadeias de produção vão ser repensadas, com relocalizações produtivas em que o just-in-time vai ser substituído pelo just-in-case, para reduzir riscos e melhor controlar a produção – Biden prometeu que tudo, do deck de um porta-aviões ao aço dos rails das autoestradas, vai ser feito nos EUA –, em que as batalhas pelo controlo dos recursos se vão intensificar e a C&T sai valorizada (v.g., a ciência dos materiais).
A perceção do que é estratégico vai criar limitações à cooperação internacional em diversas áreas. A longo prazo, mas não antes do meio do século, tudo se conjuga para que emerja uma nova ordem internacional, regionalmente estruturada, com dois grandes blocos concorrentes, económicos e políticos; a questão é saber se cooperantes ou hostis.