A unidade alemã nunca foi apenas um ato de Estado, mas uma tarefa para gerações.” A frase de Helmut Kohl, proferida no auge do entusiasmo pela reunificação alemã, nunca pareceu tão atual como agora. As eleições federais de 2025 trouxeram à superfície as fissuras profundas que ainda atravessam o país, expondo a ilusão de que o processo de reunificação estava completo. Mais de três décadas após a queda do Muro de Berlim, os alemães votaram de forma a revelar que a unidade nacional continua um conceito frágil. A geografia política da nova Alemanha reforça velhas fronteiras, e a ascensão da Alternativa para a Alemanha (AfD) no Leste representa mais do que um desvio eleitoral: é um sintoma de um país onde o ressentimento e a desigualdade regional se transformaram em forças estruturantes do debate público.

A CDU, liderada por Friedrich Merz, venceu as eleições com 28,5% dos votos, mas ficou longe de alcançar uma maioria confortável. O Partido Social-Democrata (SPD) caiu para um humilhante 16,4%, confirmando a erosão contínua de um partido que já foi pilar da estabilidade política alemã. Mas o verdadeiro impacto veio da extrema-direita. A AfD, com 20,8%, consolidou-se como a segunda maior força política, tornando-se hegemónica no Leste do país, onde ultrapassou os 30% em várias regiões. Este fenómeno não pode ser reduzido a um protesto efémero ou a uma conjuntura eleitoral atípica. Ele é um reflexo do fracasso da Alemanha unificada em corrigir as desigualdades e em integrar social e economicamente os seus cidadãos de forma equitativa. A Alemanha pode ter sido reunificada no papel, mas a realidade mostra que ela permanece uma nação dividida.

O ressentimento do Leste em relação ao ocidente tem raízes profundas. No imaginário coletivo de muitas das antigas regiões da RDA, a reunificação foi um processo conduzido em termos exclusivamente ocidentais, sem espaço para a preservação das especificidades sociais e culturais do Leste. A transformação abrupta da economia planificada num modelo de mercado desregulado trouxe consigo desemprego massivo e um desmantelamento brutal da estrutura industrial que, embora ineficiente, garantia um mínimo de estabilidade. As cidades perderam população, as oportunidades de emprego tornaram-se escassas e, com o passar dos anos, a promessa de igualdade económica e social foi sendo desmentida por dados concretos: salários mais baixos, menor investimento público e uma perceção de marginalização que se tornou endémica.

Os eleitores no Leste olham para Berlim e veem um governo que os ignora, uma elite política que fala de integração europeia e multiculturalismo enquanto as suas comunidades enfrentam estagnação económica e declínio populacional. O voto na AfD é, assim, uma reação visceral contra esta alienação, um grito de revolta contra um sistema que se tornou irrelevante para eles.

Do outro lado, o ocidente alemão continua a desfrutar da prosperidade que sempre o distinguiu. Estados como a Baviera e Baden-Württemberg são centros de inovação, com elevados padrões de vida e uma economia robusta baseada em setores de alto valor agregado. Para estes eleitores, a estabilidade é o bem mais precioso, e a CDU continua a representar esse ideal de continuidade. Contudo, mesmo em algumas regiões ocidentais mais industrializadas, a AfD conseguiu penetrar, explorando as ansiedades de uma classe trabalhadora que se sente ameaçada pela globalização e pelo crescimento da imigração. O sucesso da extrema-direita não se resume a uma questão geográfica, mas sim à perceção de que há uma classe dirigente distante e indiferente às preocupações do cidadão comum. O divórcio entre a política institucional e o eleitorado nunca foi tão evidente como nestas eleições.

A consequência mais imediata deste novo mapa político será a dificuldade em formar um governo coeso. A CDU, mesmo sendo o partido mais votado, não tem margem suficiente para governar sem fazer concessões significativas a outros partidos. O SPD, enfraquecido, dificilmente poderá desempenhar um papel de estabilizador como no passado. A fragmentação do Bundestag torna inevitável a formação de uma coligação instável, incapaz de produzir reformas estruturais de longo prazo. O risco é que esta paralisia governativa apenas alimente ainda mais o ressentimento dos eleitores, criando as condições ideais para que a AfD continue a crescer.

Para além da governabilidade interna, a ascensão da extrema-direita coloca desafios significativos para a posição da Alemanha no contexto europeu. No entanto, Friedrich Merz encara esta conjuntura não como uma crise, mas como uma oportunidade para reforçar a influência da Alemanha e liderar um novo ciclo político na Europa. Perante a guerra na Ucrânia, o enfraquecimento da NATO e a crescente instabilidade geopolítica, Merz quer posicionar-se como o estadista que pode restaurar a ordem e garantir um futuro seguro para o continente.

A invasão russa da Ucrânia expôs fragilidades estruturais na defesa europeia e levantou questões prementes sobre o papel da Alemanha como potência militar e diplomática. Durante anos, Berlim manteve uma posição hesitante no que toca a investimentos na defesa, escudando-se sob a proteção militar dos Estados Unidos através da NATO. No entanto, com a política externa norte-americana cada vez mais focada nos seus próprios interesses estratégicos e um crescente ceticismo interno sobre o compromisso com a segurança europeia, a Alemanha vê-se forçada a repensar a sua abordagem. Merz, ao assumir a liderança da CDU, tem demonstrado um discurso mais assertivo, defendendo que a Europa deve desenvolver uma capacidade de defesa autónoma, robusta e menos dependente da aliança transatlântica.

Nesse sentido, Merz tem defendido um aumento substancial dos gastos militares, comprometendo-se com a meta de 3% do PIB para defesa, mas argumentando que esse valor deve ser apenas o início de uma transformação mais profunda. Para ele, a Alemanha deve liderar a criação de um sistema de defesa europeu coordenado, que permita responder a ameaças externas sem depender excessivamente dos Estados Unidos. Além disso, apoia um rearmamento estratégico das forças armadas alemãs, modernizando o seu arsenal e reforçando a capacidade de resposta da Bundeswehr, que há anos sofre com falta de financiamento e equipamentos desatualizados.

No entanto, a sua ambição vai além da defesa. Merz quer que a Alemanha recupere um papel central na definição do futuro da União Europeia, tornando-se o motor de uma nova fase de integração política e económica. Com a crescente fragmentação do bloco europeu, exacerbada pelo crescimento do euroceticismo e pelo declínio da influência da França sob a presidência de Emmanuel Macron, Berlim surge como a única capital capaz de garantir estabilidade e unidade. Merz propõe um reforço das instituições europeias, defendendo uma maior coordenação económica e políticas comuns que tornem a UE mais competitiva face às potências globais.

Outro ponto central da sua visão é a necessidade de reduzir a dependência energética da Rússia. A crise energética gerada pela guerra demonstrou os perigos de uma política de abastecimento vulnerável, e Merz defende um investimento massivo em energias renováveis, combinando pragmatismo económico com segurança estratégica. Para ele, a transição energética não é apenas uma questão ambiental, mas um imperativo geopolítico: a Europa não pode continuar refém de regimes autoritários para garantir o seu fornecimento de energia.

Apesar dos desafios internos que enfrenta, Merz está determinado em projetar a Alemanha como o centro da nova ordem europeia. Sabe que não será fácil consolidar este papel num momento em que as tensões políticas internas crescem e o eleitorado se mostra cada vez mais polarizado.

No entanto, Merz acredita que a sua visão pode unir os alemães em torno de um novo projeto nacional e europeu. Ao posicionar-se como um líder pragmático e decidido, procura atrair tanto os eleitores conservadores que querem uma política externa mais firme, como os setores centristas que acreditam na importância do compromisso europeu. A sua estratégia passa por apresentar a CDU como a única força capaz de garantir que a Alemanha continue a desempenhar um papel crucial na cena internacional, equilibrando segurança, crescimento económico e estabilidade política.

O que está em jogo não é apenas o futuro da Alemanha, mas o futuro da própria Europa. Se Merz conseguir afirmar-se como o líder capaz de responder aos desafios do presente, poderá redefinir o papel de Berlim na ordem internacional e consolidar uma nova era de liderança europeia. Se falhar, a Alemanha arrisca-se a perder influência num momento em que a Europa mais precisa de um eixo forte e decisivo. O tempo dirá se a sua ambição se traduzirá em liderança real ou se será apenas mais um político a tentar, sem sucesso, preencher o vazio de poder que ameaça fragmentar a União Europeia.

Internamente, a questão que se impõe agora é se os partidos tradicionais estão dispostos e são capazes de responder a este novo desafio. A resposta não pode passar por uma mera rejeição moralista da AfD e do seu eleitorado, nem por um alarmismo exagerado que apenas fortalece a narrativa de vitimização da extrema-direita. O caminho terá de ser outro: reconhecer os erros cometidos nas últimas décadas, reavaliar as políticas de desenvolvimento regional e reconstruir uma relação de confiança com os eleitores que se sentem excluídos do projeto nacional. Isso implica investimento real no Leste, medidas concretas de reindustrialização e uma aproximação política que vá além dos discursos tecnocráticos. Acima de tudo, exige uma mudança na forma como a política é conduzida, tornando-a mais próxima das preocupações quotidianas dos cidadãos e menos centrada em debates abstratos sobre o destino da Europa e do mundo.

Helmut Kohl estava certo quando disse que a unidade alemã seria uma tarefa para gerações. O problema é que, ao longo dos anos, essa tarefa foi sendo descurada. As eleições de 2025 foram um aviso claro: se a Alemanha continuar a ignorar as suas fraturas internas, poderá enfrentar um futuro de instabilidade crescente. O tempo de discursos vazios já passou. Se a classe política não agir agora, a história poderá muito bem repetir-se, e o sonho de uma Alemanha verdadeiramente unificada poderá transformar-se num pesadelo de polarização e fragmentação irreversível.