Poucas vezes na História – tirando na eleição de 1860, que precedeu a secessão do Sul e a guerra civil – a América esteve tão dividida. Em 1860, Lincoln venceu no Colégio Eleitoral com 180 votos do Norte, do Nordeste e da Califórnia contra o seu rival democrata do Sul, o vice-Presidente John C. Breckinridge, que teve 72 votos dos Estados que formariam a Confederação. Houve mais dois candidatos votados, John Bell e Stephen Douglas.
A divisão vinha então da questão da escravatura nos novos territórios do Oeste e agudizou-se porque, embora Lincoln e os republicanos tivessem prometido não interferir com a escravatura no Sul, eram contra a sua extensão aos novos territórios do Oeste.
A secessão e a guerra civil começaram aí. Lincoln queria, acima de tudo, preservar a União. Ganhou a guerra e foi o 16º presidente e o primeiro presidente republicano dos Estados Unidos.
Desta vez não vai haver secessão, nem assalto ao Capitólio, mas os vencidos parecem muito perturbados com a derrota, talvez porque os media de referência – do “NY Times” ao “Washington Post”, da CNN, à CNBC – os convenceram que era uma luta entre ilustrados e bárbaros, civilizados e selvagens, bons e maus; e que a Ilustração, a Civilização e o Bem não podiam perder perante a Barbárie, a Selva, o Mal. E com celebridades a ajudar e sondagens a confirmar estes desejos, o choque perante o resultado não podia ser maior.
Mas perderam, por isso partiam para “a Resistência”, como anunciou, solene, a vencida Harris. Não iam fazer um mea culpa, um exame de consciência, uma autocrítica da pseudo sociologia eleitoral em que se tinham deleitado como donos dos votos – das mulheres, dos latinos, dos afro-americanos.
Não. Iam resistir. Iam colar as etiquetas que colaram a Trump, aos seus nomeados: Musk deixava de ser o génio da inovação e da modernidade capitalista; Kennedy, quando mudara de lado, passara a ser um louco negacionista, que se andara a oferecer à vez; Tulsi Gabbard é amiga de Putin e de Assad, de quem está “a soldo”. Com esta narrativa, o Partido Democrata não deverá ir longe, até porque são os americanos que votam na América, e não os europeus, onde a lavagem ao cérebro não tem contraditório.
E parece que os americanos estão fartos: fartos de uma Economia excelente nos números da Macroeconomia, mas em que dois terços da população não sabem como chegar bem ao fim do mês; fartos de uma imigração descontrolada para obedecer ao que é muitas vezes mera retórica ideológica; fartos da utopia woke, da sua “novilíngua”, dos seus cancelamentos, das suas minorias, dos seus delírios de autodeterminação.
O Partido Democrata abandonou a classe trabalhadora – ainda que, em parte, já tivesse sido abandonado por ela –, para se aliar a uma nova Esquerda dita intelectual e radical, feita de Marx, Marcuse e mil géneros, e tentar seduzir e colonizar mentalmente os eleitores com a cumplicidade dos media de referência. A elite, académica, globalista, libertária em costumes e com o seu quê de decadente que tomou conta do Partido Democrata, não concebe sequer a ideia de poder perder a hegemonia para “grunhos”, “deploráveis”, e “populares” – enfim, de a perder para Trump, cuja “perigosa” facção pensante, representada por J. D. Vance, vem da ala pós-liberal do Partido Republicano.
Como tudo o que vale e importa em política, como todos os movimentos de fundo, esta vitória republicana foi forjada num longo ciclo de derrotas/vitórias: a derrota de Barry Goldwater e a crucificação de Nixon no Watergate levaram à ressurreição de Reagan e à vitória na Guerra Fria, depois dos desastres do progressista bondoso, cristão e utópico Jimmy Carter, e dos desastres dos neocons, cobertos pelo vice-presidente republicano Dick Cheney – apoiante de Harris e Walz de última hora e alçado pelos seus antigos inimigos a grande sacerdote do “never-trumpismo”.
A mandar na América fica o team Trump, Vance, Musk, Vivek, Gabbard: um “dream team”, se fosse do lado dos “bons”, “um bando de incompetentes, delinquentes, loucos, oportunistas”, sendo do lado dos “maus”.
E a Europa?
Seja como for, é esta equipa com que os europeus vão ter de lidar a partir de 20 de Janeiro. Se lá chegarmos, pois com Biden a escalar na Ucrânia a 60 dias do fim do mandato, basta Putin não ter a paciência nem a inteligência de esperar para ficar tudo resolvido pelo pior até ao fim do ano.
Ao contrário do que alguns nos querem fazer crer, Trump não vai abandonar a NATO nem a Europa ao novo Pedro, o Grande, ao novo Gengis Khan de Moscovo. Mas vai exigir que os europeus se preocupem com a defesa, paguem os 2% do PNB para a NATO, levem a sério o novo tempo de Realpolitik. É também claro que os líderes e partidos nacionalistas-populares e nacionais-conservadores, Marine Le Pen, Giorgia Meloni, Victor Orbán, Santiago Abascal, André Ventura, os polacos do Lei e Justiça, não sendo todos iguais, nem mesmo ou sobretudo em política externa, vão ter um novo conforto e apoio com a vitória dos republicanos nos Estados Unidos.
Depois da Guerra Fria e do fim da URSS, os partidos comunistas europeus, já abalados pelos exemplos pouco exemplares dos socialismos reais, foram desaparecendo. A deslocalização e desindustrialização, abençoadas por Bruxelas, produziram os seus efeitos e as classes trabalhadoras – ou o que delas restava – passou a votar também ou preferencialmente em partidos nacionalistas, como o Front National francês ou o Freiheitliche Partei Österreichs austríaco.
Estes partidos começaram ainda a receber os votos dos eleitores religiosos e conservadores, também porque os partidos do centro-direita, liberais ou democratas-cristãos, deixaram cair os valores ditos tradicionais, cedendo ao policiamento e ao controle da opinião da Esquerda.
Com a libertação da Europa Oriental, as “nações cativas” do Leste, que foram sucessivamente sendo integradas na União Europeia, trouxeram reforços ao nacionalismo conservador. O facto de terem estado sob o domínio soviético faz com que não queiram tutelas, nem mesmo a tutela simpática de Bruxelas. E o comunismo e o Estado policial comunista tinham, simultaneamente, impedido que a deriva libertária dos costumes nos anos 60 ali chegasse, e reforçado uma resistência nacional e religiosa ao Estado policial satelizado por Moscovo.
Deste modo, na Europa, os partidos nacionalistas-conservadores e nacionais-populistas, têm todas as razões para festejar a vitória de Trump. E a Esquerda, que trocou a justiça social pelo wokismo, e os partidos do centro-direita, que abandonaram os valores conservadores, têm todas as razões para reflectir. Para já, não parece que estejam a reflectir muito; antes, vemo-los de novo empenhados em seguir pelo mesmo caminho.
O recurso aos tribunais para fins políticos, com medo do povo e do voto do povo e contornando “a democracia” segue essa via – em França, o Ministério Público quer processar Marine Le Pen, e decretar a sua inelegibilidade por cinco anos, o mesmo esquema que foi tentado contra Trump. A decisão de Biden, presidente em gestão, de autorizar a Ucrânia a usar mísseis ATACMS contra a Rússia, escudando-se na letra da lei e ignorando a vontade popular já expressa, também. E a consciência de estarem, aqui sim, a pôr em perigo a democracia, parece continuar a não existir.
Deus nos guarde até 20 de Janeiro de 2025.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.