1. A (suposta) salvaguarda da paisagem

Paisagens, quero-as comigo”, diz-nos Fernando Pessoa numa célebre passagem da respetiva poesia ortónima.

Trata-se de uma citação que bem pode resumir o cenário vivido no município de Nisa, em torno das recentemente criadas taxas de salvaguarda da paisagem.

Na respetiva sessão ordinária, realizada no dia 25 de setembro de 2020, sob proposta da Câmara Municipal, foi aprovada por unanimidade, a Alteração ao Regulamento da Tabela de Taxas Municipais do Município de Nisa que, de entre outras alterações, introduz um conjunto de taxas pela salvaguarda da paisagem, incidentes sobre centrais fotovoltaicas com base, respetivamente:

  • Na potência instalada (em MW); e
  • No impacto negativo na paisagem natural do Concelho (em Ha).

No Preâmbulo da Alteração do respetivo Regulamento de Taxas Municipais, publicada pelo Aviso n.º 17833/2020, dispõe-se no seguinte sentido:

apesar de serem amplamente difundidas todas as vertentes positivas desta fonte de energias

renováveis (Solar), têm sido descoradas as vertentes negativas, como o impacto visual e transformador da paisagem, bem como o contributo para a desertificação humana, já de si grave nestes territórios de baixa densidade, que conduzirá ao não aproveitamento agrossilvopastoril do território”.

Acrescenta-se ainda, no mesmo Preâmbulo, que “sendo o concelho de Nisa de aproveitamento maioritariamente florestal e agrícola, há a crescente preocupação da perda dessa base socioeconómica, associada à perda da população ativa, o que revela uma enorme preocupação em manter a paisagem (matéria prima) que permita o desenvolvimento e a fixação humana”.

Vejamos, com detalhe adicional, alguns dos problemas que antecipamos decorrerem da imposição deste tipo de taxas.

2. O fundamento para a criação das novas taxas em Nisa

Ainda ao nível do Preâmbulo do Alteração do respetivo Regulamento de Taxas Municipais a introdução deste tipo de taxas é justificada nos seguintes termos:

“No que respeita à salvaguarda da paisagem, é invocado como fundamento a remoção de um obstáculo jurídico ao particular, porquanto são impostas, pelas políticas gerais do Estado e Comunitárias, restrições e proibições legais ao nível da alteração da paisagem, pretendendo assegurar a conservação da mesma ao longo do território nacional com a limitação de obras desta ou qualquer outra natureza que seja apta a alterar substancialmente a disposição e constituição da paisagem natural, vindo o Município intervir em benefício do particular ao permitir que, anualmente, este mantenha o seu investimento nos painéis construídos sem violar qualquer disposição legal e prestando a sua contribuição — a taxa — em contrapartida pelo benefício que lhe advém da construção que mantém”.

Ora, conforme é sobejamente conhecido, o sistema fiscal português acolhe três modalidades de taxas, cujos caracteres são devidamente reconhecidas na lei:

  • Taxas pela prestação concreta de um serviço público (ex: propinas do ensino superior);
  • Taxas pela utilização de um bem do domínio público (ex: Taxa de Recursos Hídricos, cobrada pela APA); e
  • Taxas pela remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, de que seriam exemplo, no entender do Município de Nisa, as taxas agora criadas.

Sucede, porém, que os fundamentos aduzidos pelo Município, em torno da tentativa de enquadramento das taxas agora criadas ao abrigo de uma qualquer remoção de obstáculo jurídico, colidem frontalmente com jurisprudência há muito consolidada do Tribunal Constitucional.

Trata-se de jurisprudência que, no essencial, entende (e bem) que o encargo para a remoção só pode configurar-se como “taxa” se com essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semipúblico ou coletivo – caso contrário, estaremos apenas perante aquilo a que o mesmo Tribunal, ancorado em ampla doutrina fiscal, apelida de “licenças fiscais”.

De tal forma, esta posição tem levado a que o Tribunal rejeite que se possa falar de taxa quando, ainda que se esteja perante a eliminação de um obstáculo ao exercício de certa atividade (ou seja, perante uma “licença”), não ocorra qualquer utilização de um bem semipúblico.

Note-se, desde logo, que em momento algum o Município alicerça a cobrança destas taxas no aproveitamento de um bem semipúblico ou público – a paisagem – que, ainda assim, seria discutível, dado que as centrais fotovoltaicas se encontram localizadas em terrenos privados.

Mais grave, todavia, é a base de incidência sobre a qual incidem estas taxas, a qual compromete, e de forma definitiva, a sua sobrevivência face ao crivo de conformidade à Constituição.

Em qualquer um dos casos, estão em causas tributos “ad valorem”, ou seja, baseados num percentual sobre capacidade instalada (MW) ou o impacto negativo na paisagem natural do Concelho (em Ha).

Trata-se de uma estrutura de incidência que, olhando para outros casos célebres na história do sistema fiscal português, antecipa a existência de impostos encapotados que, na realidade, pretendem angariar receita adicional através de uma base de incidência que não assume qualquer tipo de expressão bilateral – como seria próprio e até mesmo imperativo numa taxa.

Se dúvidas restassem de que está em causa uma conformação típica de imposto, é o próprio Município de Nisa que, no já citado Preâmbulo, utiliza expressões como “outros rendimentos obtidos” (a respeito da taxa pela potência instalada) ou “um valor que vá colmatar a perda da potencial utilização do solo, noutra possível exploração que não altere gravemente a paisagem atua” (no caso da taxa pelo impacto negativo na paisagem natural do Concelho).

3. As declarações governamentais e a insustentável leveza da tributação da paisagem em Nisa

Curiosamente, também ao nível governamental não passaram despercebidos os impactos associados à introdução deste tipo de taxas no Município de Nisa.

De acordo com as declarações do Ministro do Ambiente e da Transição Energética, as taxas agora aprovadas pelo Município de Nisa correspondem a “uma imposição de verdadeiros impostos através de regulamentos que, não tendo sido criados pela Assembleia da República ou pelo Governo com autorização desta, implicam, inevitavelmente, a inconstitucionalidade orgânica das normas que criam esses tributos”.

Não será seguramente uma posição que augure um futuro promissor para este tipo de taxas, sobretudo sabendo de antemão que o seu histórico remonta a tributos de cariz semelhante cobrados por alguns municípios galegos e que rapidamente foram eliminados, precisamente tendo por base as ameaças de flagrante desconformidade à Constituição Espanhola.

Será caso para dizer que o Município de Nisa faz uma leitura um tanto ou quanto literal do poema de Fernando Pessoa, fazendo suas as paisagens e, com estas, uma nova fonte de receita municipal.