Os governos que tomaram o gosto à obediência popular face à ameaça pandémica, dificilmente deixarão de usar e abusar do potencial despótico reavivado pelos métodos do “novo normal”.

A sensatez aconselha-nos a não negligenciar ameaças desconhecidas e a fazer cedências em momentos de excepção. Nesse sentido, convém manter uma postura curiosa, e ao mesmo tempo humilde, na busca de conhecimento e de soluções para tais ameaças.

Porém, temos hoje reunidas condições pouco favoráveis à sensatez e à moderação nas atitudes e comportamentos: a confiança desmedida nas competências dos governos; a crença na quase imortalidade humana graças às inéditas conquistas na área da medicina; a crescente aversão ao perigo e aos riscos; os apelos à acção directa e às soluções drásticas que dispensam intermediários; e por último, mas não menos importante, a necessidade de sinalização de virtude na era das comunicações imediatas. As opiniões (ou emoções) formam-se e polarizam-se quase sempre nas redes sociais.

Ainda noutra dimensão, nos relacionamentos cara a cara, à medida que o distanciamento social se normalizou, a saudável empatia entre os indivíduos tem dado lugar à indiferença, ou até à crispação – em parte, consequência da fragilização da saúde mental, particularmente ameaçada ao longo de todo este tempo pelos vários factores que agudizam os estados de ansiedade e depressivos.

Remetendo-me a Edmund Burke (1757): «Nenhuma paixão despoja tão completamente o espírito de todas as suas faculdades de agir e de raciocinar quanto o medo. Pois este, sendo um pressentimento de dor ou de morte, actua de maneira que se assemelha à dor real. (…) Para tornar algo muito terrível, a obscuridade parece ser, em geral, necessária. Quando conhecemos toda a extensão de um perigo, quando conseguimos que os nossos olhos a ele se acostumem, grande parte da apreensão desaparece.»

Portanto, é essencial suspeitar de qualquer tentativa de obscurecimento de informações ou de imposição de um pensamento único, pois isso pode ser revelador de uma instrumentalização política do medo.

Se dúvidas existirem quanto à perda de faculdades intelectuais perante a avassaladora sombra do medo, atente-se na reacção acalorada da opinião pública sobre a vacinação, o confinamento e as várias medidas que, vez após vez, redesenham drasticamente as rotinas, as prioridades e as oportunidades de cada pessoa. Bastaram poucos meses para que, do livre e pacífico processo de vacinação, se passasse a uma intimidante aceitação de medidas de discriminação e segregação social, de fiscalização arbitrária e, como se tudo isto não fosse suficientemente discutível e intrusivo, apela-se também, de forma desinibida, à vacinação obrigatória.

Vai ficando cada vez mais evidente que não há assim tanto mérito político no processo de “achatar curvas”. Acresce que a atmosfera securitária, assente numa linguagem militarizada, serve somente para colher louros com impacto eleitoral, quando os povos são de fácil arregimentação sob a nuvem de ameaças obscuras. Essa atmosfera permite ainda explorar a figura dos bodes expiatórios, diabolizando os dissidentes.