A criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, significou a imposição da proteção do direito de patente do produto a todos os países que não protegiam invenções na sua ordem jurídica, via Acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights). Direito esse que concede o monopólio legal da exploração de uma invenção e condiciona a sua produção ao licenciamento voluntário ou à sua queda no domínio público, passados vinte anos.

O TRIPS veio também limitar o licenciamento obrigatório de patentes – mecanismo que permite a cada um dos 164 membros da OMC autorizar, e.g. por motivos de saúde pública, uma empresa privada a fabricar uma invenção patenteada no seu território, sem o consentimento do titular da patente – consagrando uma restrição quantitativa à exportação ao confinar a maioria da produção ao respetivo mercado doméstico.

Em 2017 entrou em vigor uma emenda permanente ao TRIPS (o artigo 31bis), criada em 2003 enquanto waiver (derrogação temporária), que afasta aquela limitação, para a exportação, entre os membros da OMC, de medicamentos, vacinas, ingredientes ativos e kits de diagnóstico produzidos ao abrigo de uma licença obrigatória. Alguns membros da OMC vincularam-se a não fazer uso da emenda no papel de importadores (somente enquanto exportadores), nem mesmo em caso de emergência nacional, encontrando-se entre eles a União Europeia e os seus Estados-membros, Austrália, Canadá, Suíça, Japão e EUA.

Hoje, levantam-se vozes de apelo a que a União Europeia reverta a decisão de não beneficiar do 31bis. Permanecer sujeito àquela limitação significa renunciar à importação de produtos farmacêuticos produzidos ao abrigo de licenças obrigatórias em qualquer membro da OMC. A acrescer, se algum Estado-membro da União recorrer a licenças obrigatórias, a produção ficará limitada ao seu território, discriminando os doentes dos outros Estados-membros.

No entanto, a resposta da União à atual escassez limitou-se à criação (em janeiro de 2021) de um sistema de controlo de exportações de vacinas, dos seus atuais produtores, para certos países terceiros – que já valeu um bloqueio, pela Itália, de uma remessa de vacinas destinadas à Austrália.

Por outro lado, encontra-se em discussão um (outro) novo waiver, proposto no foro da OMC, em outubro de 2020, pela Índia e pela África do Sul, para uma quase total suspensão do TRIPS, até que a maioria da população mundial alcance a imunidade contra a Covid-19.

Neste tempo, em que a saúde e a economia globais dependem da celeridade da resposta à procura mundial da vacina, urge revisitar o 31bis criado para situações de capacidade insuficiente no setor farmacêutico. Servindo quer aos países mais pobres, cujo acesso não pode ser refém de canais de doação e caridade, quer aos países mais ricos, para a negociação de preços e para a imposição de novos canais de produção em vários Estados, aumentando a escala de fabrico em todo o mundo. Sem que, para isso, se recorra a suspensões drásticas de direitos de propriedade intelectual, uma vez que o 31bis preserva o necessário equilíbrio destes direitos enquanto motores de encorajamento do investimento na inovação médica futura.

Além do “fracasso moral catastrófico”, mencionado pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde em janeiro de 2021, assistimos ao fracasso jurídico deste mecanismo de cooperação internacional, que serviu apenas uma única vez, para entregar medicamentos ao Ruanda em 2007.

Atentemos ao passo histórico dado pela Bolívia, que acaba de recorrer ao 31bis junto da OMC enquanto membro importador, que, só se replicado, abrirá o caminho para o fim da guerra por vacinas.