A recente operação policial na Mouraria, em Lisboa, descambou num triste espectáculo mediático. As televisões mostraram um número elevado de pessoas de origem não europeia encostadas às paredes de edifícios por ordem dos agentes envolvidos na operação. Daí começaram a surgir conclusões e justificações apressadas.
É legítimo à Polícia desenvolver operações tendentes a identificar e prevenir a prática de crimes. Crimes são actuações que violam a lei penal e que como tal são punidas. Muitas vezes não é necessário que se verifique a produção efectiva de um dano, basta que exista a possibilidade de tal vir a suceder. Por exemplo, a mera detenção de uma arma não registada de determinado tipo pode ser crime, independentemente de ter sido utilizada. Também a posse de determinadas quantidades de substâncias estupefacientes é qualificada como crime, mesmo que não tenha sido observada nenhuma actividade de tráfico.
Este tipo de operação policial deve ser suportada numa autorização judicial, que deve especificar a tipologia de crime e os indícios concretos que justificam a busca. Tanto quanto foi dado conhecimento público, a Polícia tinha obtido essa autorização.
O ponto passa assim da legalidade da realização da operação para a forma como a mesma foi concretizada, e para a sua justificação, uma vez que não consta que da operação em causa tenham sido detectados grandes indícios ou provas de actividade criminosa.
É inegável que poderiam ter sido tomados cuidados para não transformar a operação num espectáculo público que iria acicatar o debate que actualmente se trava na sociedade portuguesa sobre a imigração. O problema, como é habitual nestas coisas, é que essa discussão assenta em grande medida em percepções, não na realidade, e é alimentado por intenções.
O problema das percepções é que resultam de uma interpretação de informações incompletas, mas que sensorialmente transmitem uma ideia tão forte que é interpretada como verdadeira.
Sabemos que a zona do Martim Moniz e da Mouraria concentra muitos imigrantes africanos e asiáticos, que não têm na zona de Lisboa alternativas de alojamento. Por isso, uma operação policial de busca e apreensão que se realize nessa zona, em público e em plena luz do dia, leva sempre a que muitas dessas pessoas sejam abordadas pelos agentes, independentemente de existirem razões objectivas.
Aqui surge o tema das interpretações e das percepções – se a Polícia está a fazer buscas é porque suspeita que existe alguma coisa, e se se suspeita é com certeza porque há. Mesmo que não haja.
E sabemos que há quem tenha a intenção de distorcer a realidade com a imputação a imigrantes em abstracto, sobretudo muçulmanos e asiáticos (os “bandidos”, como lhes chamam) de uma imagem de criminalidade. Mesmo que não sejam criminosos.
A partir de informações intencionalmente distorcidas cria-se um clima de insegurança favorável aos proponentes dessas teses, a quem é muito aproveitar as imagens televisivas desta operação para criar na população um sentimento de insegurança e rejeição da imigração. Mesmo quando os dados oficiais não comprovam a incidência de crimes nem a sua imputação a essa população imigrante. Porque não é isso que os sentidos nos dizem.
No fim de tudo, o que não foi acautelado foi a dignidade das pessoas. E isso, num Estado de Direito, é no mínimo lamentável. Mal andou, por isso, a liderança da Polícia, incluindo o Governo, na preparação e execução desta operação.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.