O acordo do Conselho Europeu relativamente ao compromisso do fundo de recuperação, e que foi atingido já durante o princípio da última semana, é um compromisso com contornos frágeis, mas não deixa de ser histórico.

Depois da crise das dívidas soberanas ter quebrado a barreira tabu do mandato do BCE relativamente à compra de ativos – e uma reforma, ainda que inacabada, do sistema bancário europeu – naquele que ficou para sempre conhecido como o momento de Mario Draghi em 2012, a solução agora apresentada, também representa uma relevante queda de um mito, desta feita relacionado com o caráter de estruturação de dívida mútua, quer com o princípio da solidariedade imbuído na mesma.

Na prática, o Fundo de Resgate da crise assenta numa combinação de doações e empréstimos aos Estados-membros e é financiado por dívida emitida ao nível da União Europeia. O acordo ganha desde logo esta relevância histórica porque estabelece um precedente para futuras situações de gestão crise com melhor equilíbrio entre política monetária e fiscal – evidenciando uma maior amplitude na abordagem às crises dentro dos países do bloco económico.

A resposta assente em duas vertentes ajuda a reduzir os chamados riscos de contexto (tail risk), e pode ajudar a incentivar estruturalmente a confiança de famílias, empresas e investidores. A alocação direcionada das doações aos países que mais necessitam acaba por ser outra conquista em termos de solidariedade, podendo gerar um efeito multiplicador mais elevado. Por fim, a essência do acordo acaba por ser bastante suportada em reformas importantes do tecido económico mais tradicional, apoiando na transição para uma cadeia de valor mais “verde” e digital.

O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia – programa Next Generation EU – visa alocar cerca de 750 mil milhões de euros, apoiados pelo orçamento da União, para distribuir doações e empréstimos para objetivos de investimento, com reformas. Isto significa que a resposta não é desenhada apenas para elevar o crescimento nos próximos anos, como pode também permitir aumentar o crescimento potencial a longo prazo.

Se devidamente implementado como proposto, o investimento extra gerado pelo fundo poderia elevar o nível do PIB da UE em alguns pontos percentuais até 2025. E isto poderá ser suficiente para ajudar na sustentabilidade da dívida soberana a médio prazo, criando ainda confiança no mercado financeiro pelo facto de representar uma evidência de que uma nova estratégia comum de resposta à crise está agora colocada em prática.

O programa é assim uma potencial oportunidade para alguns países, onde os níveis mais altos de dívida podem limitar o escopo da política fiscal para apoiar a recuperação. Isso poderá acabar por aumentar as divergências de rendimento existentes entre os países da zona do euro. Além disso, se esses países precisassem de consolidar rapidamente as finanças públicas após a crise, iriam incorrer no risco de um círculo vicioso de austeridade, recessão e níveis ainda mais elevados de dívida em relação ao seu valor de criação de riqueza, mensurado pelo PIB.

Portugal é um dos países que, neste sentido, poderá ver aqui uma oportunidade para proceder a uma importante reestruturação do seu perfil. Os montantes disponíveis podem ascender a perto de 58 mil milhões de euros durante os próximos 10 anos, sensivelmente acima do dobro dos fundos comunitários a que Portugal teve direito com o último Orçamento da União Europeia, que nos atribuiu cerca de 25 mil milhões de euros entre 2014 e 2020.

A polémica política na qual desaguou o presente apoio tem sido originário nas evidências que Portugal tem sido um dos países que tradicionalmente aplica os fundos de pior forma, os quais acabam por ser objeto de reprogramação e “desviados” dos seus objetivos prioritários estruturantes, para serem depois alocados a despesas não reprodutivas e geradoras de valor.

Sejamos claros, a solução europeia é uma arquitetura inovadora que percorre o caminho certo para mais Europa. Mas é também um teste ao próprio modelo de apoio. Mais do que o montante ser suficiente, a maior prova de vida estará ligada à forma como os países que mais beneficiaram vão, realmente, implementar estas verbas para reestruturar estruturalmente as suas economias.

Mais programas deste formato serão possíveis se for criada a confiança política de que estão a ser bem aplicados. O que não funcionará é utilizar as mesmas para perpetuar a letargia e inércia reformista, em nome de agendas populistas ou de eleitoralismo de curto prazo.