A interacção digital que predomina na nossa sociedade impõe desafios à capacidade adaptativa humana que vão muito além daquilo que o nosso entendimento prevê. Pode ser interessante tentar recordar os hábitos que constituíam uma rotina padrão há vinte ou trinta anos: a menor regularidade das comunicações entre amigos e familiares durante um dia normal, os detalhes mantidos no recato da vida privada, o nível de franqueza e de descontracção nas conversas informais, as fontes informativas privilegiadas, a velocidade a que a informação era recolhida, tratada e transmitida, o ambiente em que cada pessoa formava as suas opiniões, os momentos de silêncio, ou até a maior predisposição para a leitura.
Algumas possibilidades desses tempos eclipsaram-se num ápice pela força avassaladora das tecnologias. Fazer um esforço para recordá-las não implica ser arrebatado por sentimentos de nostalgia em relação ao passado ou de aversão à realidade actual. Porém, ajuda a perspectivar em que medida as rápidas transformações, especialmente as digitais, podem ter um carácter disruptivo em diversos domínios da sociedade. É o caso do fenómeno obscurantista que alastra entre nós e que denominamos geralmente de “cultura de cancelamento”.
Os apologistas desta estratégia cultural partem de justificações morais em defesa de uma sociedade inclusiva e diversa para silenciarem argumentos, promovendo a homogeneização do pensamento, das palavras e das acções. Com o propósito de ostracizar rapidamente aqueles que atentem contra as normas sociais instituídas, a cultura de cancelamento é uma novidade particularmente perversa porque utiliza o imenso potencial das tecnologias digitais para pôr em marcha a vigilância de comportamentos e um afunilamento das opiniões tidas como aceitáveis.
Numa rede que aproxima milhões de pessoas em tempo real, é inevitável que alguém se ofenda e capitalize o seu papel de vítima, desencadeando uma onda de indignação ou boicote contra determinada pessoa ou empresa, até pelos motivos mais irrisórios. Assim, o cancelamento caracteriza-se pela facilidade com que desencadeia grandes consequências de humilhação pública a partir da descontextualização de frases, presunção de intenções nas entrelinhas, pesquisa de opiniões e acções passadas ou divulgação de pormenores da vida pessoal do mensageiro.
Sobressaem dois aspectos inerentes a esta cultura: a rapidez da acção, baseada em paixões e imediatismo (quando sabemos que a pressa é inimiga da perfeição); e a erosão entre a esfera pública e a esfera privada de cada um, sobretudo por ainda subestimarmos as incríveis repercussões daquilo que exteriorizamos nas redes sociais.
A demonização dos adversários
Douglas Murray, em “A Insanidade das Massas” (The Madness of the Crowds), nota que nada é esquecido na internet e que as nossas sociedades estão a perder a saudável capacidade de perdoar. Talvez por isso seja notória a prevalência do ressentimento, inclusive quando tantas vezes se recorre a palavras de ordem como “não esqueceremos!”, numa combinação de exibição de virtude social e de intimidação. No campo político-jurídico, reaviva-se o desejo de “fazer justiça” pelas próprias mãos, ao jeito dos antigos linchamentos públicos e apagando da consciência cívica o apego ao princípio da presunção da inocência. Nesse sentido, o meio académico e os meios de comunicação têm vindo a promover um ambiente de delação e descredibilização de quem expressa opiniões e atitudes à revelia do politicamente correcto, procurando preparar a sociedade para tolerar a aprovação de leis intrusivas que criminalizem a linguagem, as filiações e os comportamentos.
Na sua recente obra “Ideias sem Centro: Esquerda e Direita no Populismo Contemporâneo”, Alexandre Franco de Sá apresenta uma oportuna reflexão sobre a emergência dos populismos e sublinha a forma como a esquerda exerce uma “hegemonia” na academia e nos aparelhos mediáticos “para efeitos de homogeneização mental e de naturalização de uma «visão progressista do mundo»” (309).
De acordo com o autor, as relações políticas têm vindo a adquirir “a configuração moral de uma luta entre bons e maus” e é possível reconhecer que o populismo de esquerda, pressupondo-se “moral e intelectualmente superior”, tem travado “uma luta das luzes contra as trevas, do bem contra o mal, da justiça contra a iniquidade. Uma luta que justificaria o domínio dos recursos mediáticos e o seu uso (e abuso) para expor ao opróbrio público os seus iníquos adversários, silenciando as suas opiniões, interpretando-os nos seus próprios termos e apresentando, sem qualquer debate ou réplica, o seu carácter odioso” (311).
O recente episódio de intromissão do governo nas opções educativas privilegiadas pela família Mesquita Guimarães, de Famalicão, é bem representativo da facilidade com que a privacidade de uma família pode ser sacrificada às mãos da irracionalidade de algumas pessoas mais predispostas a participar no “minuto de ódio” orwelliano à distância de um tweet. O turbilhão de comentários pejorativos e de acusações inconsequentes vieram revelar que a velocidade da comunicação e o clima cultural em que vivemos pode comprometer o respeito pela privacidade, o respeito pela liberdade de consciência, e até o respeito pelos direitos constitucionais dos cidadãos, tendo em conta que o Estado está impedido de programar a educação e a cultura “segundo quaisquer directrizes filosóficas estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (art. 43.º CRP).
Num clima de medo e de exposição pública, não é apenas a mobilização rápida em favor da perseguição que reflecte o poder da cultura de cancelamento. O mais revelador desta forma de dominação é a ausência de apoio aos alvos ostracizados, já que se verifica uma crescente auto-censura por parte da sociedade. Acresce que uma sociedade pouco preparada para estruturar opiniões com base em raciocínios lógicos habitua-se rapidamente a manifestar oposição apenas com recurso a interjeições de reprovação ou descontentamento, caindo na menoridade intelectual.
Recomenda-se humildade
Alguns entusiastas das acções de cancelamento gostam de afirmar que este fenómeno não é mais nem menos do que o mercado livre a funcionar e que os críticos da cultura de cancelamento devem aceitar os novos métodos de correcção do pensamento e da linguagem. Mas, por muito que se tente romantizar este fenómeno, aquilo que está aqui subjacente é uma intenção de retirar os meios de subsistência a alguém que não obedece à ideologia estabelecida.
É irónico que os benfeitores da justiça social fiquem indiferentes à insegurança laboral, ao desejarem que os “iníquos” sofram imediatas consequências das suas palavras, acções, ou até omissões. Sim, omissões… já que a esquerda populista já não tolera a simples neutralidade. Como se não bastasse vivermos um tempo de diluição entre a vida privada e a vida pública, agora é-nos exigido que abracemos todas as “causas emancipatórias” de forma clara e inequívoca, no local de trabalho ou na sala de aula, entre familiares ou entre amigos.
Ao exigir que todos se convertam e confessem publicamente fidelidade a uma mesma visão da sociedade, a cultura de cancelamento invade o mundo empresarial com as suas cores e desejos, impondo um aborrecido mimetismo nas opções de marketing, como aquele que observamos na generalização do arco-íris na imagem das empresas em cada mês de Junho. Existe um ambiente cultural que leva a que muitas multinacionais sigam o caminho mais seguro, por opção própria ou por arrasto. Porém, não existe nenhuma evidência de que servir a sensibilidade da elite progressista atraia novos consumidores.
As decisões económicas são, em grande medida, privadas, discretas e repetidas ao longo do tempo, obedecendo às preferências subjectivas de consumo de cada um. Assim, é pouco provável que exista uma mobilização significativa de agentes económicos dispostos a alterar as suas decisões de consumo em função dos sermões de um qualquer activista digital, ao contrário daquilo que as reacções no Twitter possam sugerir durante algumas horas de quente animosidade. Isto ficou evidente no recente caso da Prozis, uma vez que a opinião do seu fundador em relação ao aborto parece não ter afectado as vendas da marca, apesar de toda a polémica produzida nas redes sociais.
Independentemente das tempestades que se geram nas redes digitais sem tempo para grande reflexão, é importante não esquecer que o empresário tem um compromisso duradouro com os seus colaboradores e que precisa de gerir recursos e estratégias de longo prazo que não devem confundir-se com as emoções da rua. Liderar com bom senso passa pela sensatez no espaço público, mas passa também pela capacidade de defender valores próprios, mesmo que dissidentes, e por preservar a empatia no local de trabalho.
Nos momentos mais críticos, quando a “máfia” do cancelamento bate à porta da empresa ou da universidade, é essencial estar firme e ser justo no cumprimento dos contratos celebrados. Acima de tudo, um empresário tem de ser humilde perante a realidade, ser conciliador e sentir o pulso à sociedade, reconhecendo as nuances que a constituem. Quem cancela faz precisamente o inverso, pois recusa conhecer e respeitar a complexidade da realidade a partir do momento em que se sente incumbido de uma missão “puritana” utópica: a missão de erradicar comportamentos tidos como inadmissíveis, infligindo danos sociais e materiais irreversíveis aos seus alvos.
Por fim, numa nota positiva, é possível reconhecer que as redes digitais têm a virtude de mostrar que existem saudáveis divergências no espaço público, apesar do actual monolitismo das democracias ocidentais. Isso é motivo suficiente para confiar que as pretensões de uma elite repressora não ditarão o fim da história e que agentes criativos e independentes podem apoiar-se mutuamente para resistir ao ímpeto totalizante de quem quer controlar o espaço público.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.