“Há muito a celebrar. Vou herdar uma situação de modernidade (higiene, férias, anestésicos, candeeiros de leitura, laranjas no inverno) e habitar um canto privilegiado do planeta – a Europa Ocidental, bem alimentada e livre de pestes.”

Ian McEwan, “Numa Casca de Noz”, 2016

Gradiva, Tradução Ana Falcão Bastos

 

A proverbial Europa dos cafés, de Steiner, ou a Europa das praças infinitas e também cosmopolitas, de Nooteboom? Confesso a minha adesão intuitiva à segunda, embora nesta hora praças e cafés sejam lugares estranhamente semelhantes no nosso imaginário: fluidas, populosas, desrespeitadoras da noção mais elementar de distância de segurança. A Europa que tanto aproximou, misturou, elevou e, também, oprimiu está agora recolhida quase inteiramente à casa de família, ao apartamento. É o momento do espanto, quando o feto literário de Ian McEwan, antecipando o seu nascimento, se engana: não, a Europa bem alimentada não está livre desta peste.

E o que fazer, na hora em que tudo arde?

O medo, ou será o tempo livre(?), erguem a pulso uma cacofonia do desespero e dos lugares que têm tanto de humano quanto de fútil. A culpa da crise é do capitalismo, da sociedade patriarcal, da nossa indiferença com o planeta Terra e com os mais velhos, a culpa é da inércia da Europa. Enfim, provavelmente entretenimento para os dias longos. Os insultos mútuos dos políticos europeus, a norte e a sul, lembram-me o revólver de sabão de Woody Allen, a dissolver-se na chuva, à saída de uma penitenciária. Vamos todos ficar ensopados, com água pela cintura? Vamos fazer um campeonato de virtudes? Eu é que sou o solidário, eu é que sou o responsável? Esta crise não tem mapa teleológico, é só presente. Assusta.

A Europa precisa de mecanismos e cabeça fria. Apontarmos armas de sabão uns aos outros não servirá de nada. Melhor usar o sabão para lavar as mãos.

A máquina parou?

Há 75 anos a Europa vivia a sua Stunde Null, assim, apropriadamente em alemão. A Hora Zero. Nunca antes um continente tinha sido sujeito pelos seus a uma tal devastação. A Segunda Guerra Mundial fez mais mortos e causou mais devastação a uma escala que relativizou todos os conflitos anteriores. Como “castigo”, discutia-se abertamente a possibilidade de remeter os alemães à atividade agrícola. Para sempre. A generosidade norte-americana e o conflito leste-oeste que se anunciava com a cortina de ferro decidiram de outra maneira. O plano Marshall foi o sinal, vindo de fora, que havia alternativa. Sob o guarda-chuva financeiro e militar americano, pensou-se uma Europa que se reerguesse a partir do “vulgar” e do “mesquinho”, seja, a economia.

Surpreendentemente, a Europa do pós-guerra restabeleceu uma série de pontes transnacionais com uma rapidez incomum e uma diligência inesperada. Instalou-se, quase de imediato, um “racionalismo por defeito”. Um continente devastado não tinha muitas opções, além de se reconstruir com uma nova ênfase em abordagens racionais e institucionais. Razão e instituições tornaram-se as forças unificadoras dos “pais fundadores” europeus. O continente optou pouco a pouco pela calma dos burocratas em lugar dos radiosos sorrisos nacionalistas dos soldados.

As alavancas económicas escolhidas distanciaram-nos do romantismo que tinha levado a Europa aos desastres sucessivos do Fascismo, Nazismo e do chamado “socialismo real”, na prática o comunismo. Os trabalhos de Penélope da burocracia europeia continuam até hoje e, para nosso bem, a escuridão mais negra da guerra não interrompeu ainda este tecer diário de regras, regulamentos e políticas. E, no entanto, mais de meio século de sonhos burocráticos ainda não transformaram a Europa numa ideia popular e num mito político viável.

Que os povos europeus se voltassem a encontrar pelo livre comércio, pelo crescimento, esses soldados de infantaria da guerra pelo reconhecimento do outro. Começou-se pelo carvão e pelo aço, pilares do armamentismo passado. A integração económica como vacina para os nacionalismos futuros. Essa tem sido a máquina primordial da construção europeia: o pragmatismo silencioso do mercado, a sua tolerância anónima, o seu cosmopolitismo merceeiro. E a democracia. Com a integração dos países ibéricos e da Grécia e, mais tarde, dos órfãos voluntários do bloco soviético, a Europa tornou-se uma máquina de consolidação da democracia.

Não faltam nem faltarão, povos nas margens da União Europeia que aspiram à adesão como bilhete para a prosperidade e garante do aprofundamento da democracia. Esse, certamente, é um distintivo digno de ostentarmos e defendermos.

E agora, a crise.

O que uma emergência médica de consequências imprevisíveis nos coloca à mesa parece jogar, em quase tudo, contra a construção europeia. As dificuldades extremas levam-nos instintivamente  a uma identificação com os próximos. Exagerada, simbólica, alimentada por elites assustadas, mas está lá. A dificuldade cívica das emergências avassaladoras é que nos intimam a proteger os nossos, com “os nossos” a tornarem-se algo terrivelmente redutor. Pátria e família, para não ir muito longe. São reações naturais, instintivas, mas que nos distraem do que sejam compromissos e pactos maiores, com os que estão mais longe do nosso “estômago”. Nas crises, o nacionalismo é um sucedâneo da democracia: as lacunas da democracia são preenchidas apressadamente, com custos enormes.

Infelizmente, não há e tardará um sucedâneo de “nacionalismo” a nível europeu, capaz de alimentar uma “vida cívica” com força vital equivalente aos nacionalismos de paróquia. O entusiasmo homogeneizador do estado-nação dificilmente se repetirá a nível europeu”.

Tal como sugerido por Benedict Anderson, as comunidades imaginadas dependem de narrativas comuns que criam um sentimento de pertença capaz de unir indivíduos díspares numa ficção de comunidade. Tal como na literatura, na política as ficções são importantes e as “comunidades imaginadas” amparam, sustentam, salvam, dão sentido. Na Europa não foi ainda possível uma narrativa consensual que sublime a violência passada numa narrativa comum que nos ative o futuro. Precisamos de trabalhar para isso.

Trabalhar a alma e o mecanismo

Se tivéssemos tempo e ânimo e calma, que Europa precisávamos de construir? Uma Europa com alma e mecanismos. Alma para debater e decidir, mecanismos para atuar. Quanto à alma, diria mais voto e mais impostos.  O voto é o motor central da democracia. Na Europa, tomar as grandes decisões pelo voto simultâneo de todos os europeus, independentemente de intermediações nacionais.

Condicionar mais decisões a maiorias qualificadas do parlamento, especialmente em áreas onde as decisões em comum são motivadoras para o projeto europeu: o ambiente, a imigração, a defesa, o amparo nas emergências. Um voto que legitime avançar a agenda europeia nos temas “constitucionais”: novas áreas de política, adesões de novos membros. Voto na escolha de um “presidente europeu”, por voto direto, com poderes executivos circunscritos mas claros e uma presença simbólica cativante. Em suma, introduzir definitivamente o princípio de “um europeu, um voto”.

O segundo suplemento de alma são, paradoxalmente, os impostos. Não mais impostos, mas impostos europeus que substituam parte dos impostos nacionais. Elevar a tributação direta decidida nas instâncias europeias, em paralelo com a redução da tributação pelos estados nacionais, para financiar a iniciativa europeia nas áreas escolhidas de intervenção comum. Para além da súmula do impulso democrático americano, acredito que “não há representação sem tributação”. Pagar do próprio bolso, sem simulacros, a iniciativa das instituições europeias, naquelas mesmas áreas onde a vontade dos europeus assim determinar encoraja o escrutínio e o amadurecimento das instituições.

E o mecanismo? Usar a legitimidade do voto e a atenção dos contribuintes para atuar decididamente em áreas de interesse comum. Seja a regulação ambiental, a segurança e a defesa, a gestão das fronteiras e, claro, a resposta a emergências.

Mas políticas comuns não significa que cada cidadão vai aceder a um bolso mais fundo para prosseguir as políticas preferidas. Política comum significa compromisso, perdas e ganhos, e uma decisão final que vai desagradar a uns por demasiado curta e a outros por demasiado voluntarista. A democracia também é isso, decidir uma política comum aceitando que não é a nossa ideal, e acreditar e amar o processo suficientemente para melhorar no futuro essa política. É preciso que não nos falte alma nem mecanismos.

E o que fazer, quando tudo arde?

A primeira base racional para que os seres humanos se aproximem em comunidade é a vontade de enfrentar riscos em comum, ultrapassar obstáculos consideráveis mas ocasionais. Partilhar custos e perdas é uma forma de solidariedade e de promoção da identidade. Mesmo o velho e roufenho nacionalismo não se alimenta tanto da prosperidade como da solidariedade, o seu “contrato” de assistência futura, na riqueza e na pobreza. A igualdade de destino é um substituto abstrato mas eficaz da igualdade real.

Ao longo do tempo, cada nação europeia pensou-se como “Europa que baste”, ou humanidade que baste, no pior dos casos. A identidade europeia foi sempre utopia, mas é raro as utopias serem inúteis. Péricles delegou para a posteridade como “nós, Atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos (…) na crença de que não é o debate que impede a ação, mas antes o facto de não nos informarmos por via do debate antes do momento de agir.” Atuemos, pois, e falemos uns com os outros, igualmente europeus.

E não apontemos pistolas de sabão uns aos outros.

Está a chover lá fora.