Em Gaza, bombardeamentos atingem alvos indiferentes à presença de civis, de jornalistas, de pessoal médico ou das Nações Unidas. No mundo inteiro, a pior fatalidade que pode acontecer a uma criança é encontrar-se naquela estreita faixa de 365km2.

Não é uma hipérbole. A imagem até peca por defeito. O número de crianças mortas em Gaza neste par de meses que leva o conflito é mais do dobro do número de crianças vítimas de conflitos bélicos ao longo do ano de 2022 em todo o mundo. Não é o holocausto outra vez, é genocídio deliberado e, seguramente, infanticídio efectivo, em massa. Morre-se em Gaza como se um exército se sentisse no direito de ignorar o direito internacional, as convenções de direitos humanos, a ordem de valores que nos mantém humanos entre humanos.

Que tipo de violência é esta a que assistimos em Gaza? É como se homens munidos de armas se achassem no direito à ira de deus, a encarnarem-na, acima dos homens e das mulheres de carne e osso. E, ao mesmo tempo, achassem também que aqueles sobre quem a violência se abate não fossem realmente dignos de humanidade – “animais”, como lhes chamou o ministro da Defesa de Israel.

Só assim se explica tamanha desumanidade – o desalojamento massivo da população palestiniana, a morte iminente por um rocket vindo dos céus, o sistema de saúde em ruínas, a maioria dos hospitais desactivados, a electricidade e a água potável a desaparecer. Para a Organização Mundial de Saúde, a catástrofe humanitária é inevitável.

Diante destes factos, não pode ser contornada a pergunta sobre qual é o principal objectivo de Israel com a violência levada a Gaza – desmantelar a estrutura do Hamas, responsável pelos ataques de 7 de Outubro, ou, em vez disso, forçar a população palestiniana desse território a uma situação humanitária sem saída, na verdade, forçada assim ao êxodo?

A linguagem de cólera divina de Israel, que tudo devasta sem que nada a aplaque, visa um povo inteiro, tal qual se estivesse a escrever uma nova página de um texto religioso. Esta não pode ser a linguagem do nosso tempo. É imperativo recusá-la.

Em face da crise humanitária vivida e da retoma das acções bélicas, António Guterres evocou o Artº 99 da Carta das Nações Unidas, que lhe confere o poder de chamar o Conselho de Segurança a pronunciar-se sobre qualquer assunto que, em sua opinião, ameace a manutenção da segurança e paz internacionais. As razões humanitárias, na proporção do choque crescente no Médio Oriente, fazem temer a possibilidade de que o conflito alastre pelas geografias mais previsíveis, o Líbano, a Síria, o Iraque, e reverbere pelo mundo inteiro como um mal-estar fundado na desigualdade de poderes e na dualidade de critérios planetários.

No dia 8 de dezembro (dia em que também se celebra a primeira Intifada, que começou com pedras), assistiu-se ao veto dos EUA, na qualidade de membro permanente à moção proposta pelos Emirados Árabes Unidos para um cessar-fogo imediato e permanente.

O argumento contra foi o de que isso permitiria a reorganização do Hamas. Mas este é obviamente um argumento inaceitável do ponto de vista moral a partir do momento em que a mesma administração norte-americana reconhece o “hiato” entre a protecção de civis e o resultado da acção das forças de Israel. É obsceno este outro hiato que toma por mal menor um genocídio na forma de infanticídio em massa.

E como pode persistir válido este poder de veto de um só país contra todo o mundo? Sem visar directamente a administração norte-americana, António Guterres reagiu bem. Não deixará de perseguir o objectivo de um cessar-fogo. Quanto às instituições mundiais que estão a falhar esse imperativo, ele próprio assume-o: “são fracas e desactualizadas, presas num túnel do tempo que reflecte uma realidade de há 80 anos”.

Aliás, é como se houvesse um túnel entre estas duas guerras que vivemos hoje – uma em Gaza, outra na Ucrânia, ambas netas, ou mesmo bisnetas, de uma ordem internacional pós-guerra que se cristalizou na conveniência de interesses e poderes que remanescem de uma ordem colonial. Vivemos uma época de aceleração social, tudo nos corre demasiado depressa. Menos o tempo histórico, imobilizado há quase um século. Um dia quebra de forma global.

As Nações Unidas arrastam atavismos e bloqueios incríveis. A composição permanente do Conselho de Segurança, exclusivamente por potências vencedoras da II Guerra Mundial, é um anacronismo que devia ter sido resolvido antes de qualquer pessoa de meia-idade ter nascido.

Além disso, está em flagrante contradição com o espírito paritário entre as nações do mundo, nomeadamente entre o Norte e o Sul – nenhum país a Sul da linha do Equador dispõe do poder de veto. Como pode a França ou o Reino Unido ter um poder que é negado à Índia, país mais populoso do mundo, ou ao Brasil, maior país ibero-americano? Como pode a Europa ter três representantes em cinco? Como pode África inteira não ter um?

António Guterres foi eleito Secretário-Geral da ONU por exclusivo mérito próprio, mediante currículo feito na própria organização. Hoje é, talvez como nenhum dos seus predecessores, voz global para uma mudança histórica necessária para a instituição que continua a ser a que mais pode fazer pela paz e o entendimento mundiais. E não sendo o mais importante, também convém ir reconhecendo: na história deste país, poucas vezes um nosso concidadão esteve tão dentro da engrenagem da História e do lado certo. Conte com o nosso apoio.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.