Já perdi a conta ao número de vezes que disse nos últimos meses: “Não gosto deste mundo assim, sem afeto.” Em resposta a esta minha expressão, repetida em diversos contextos, tenho percebido um certo alívio do contacto humano. O que me tem provocado uma mistura emocional que vai da preocupação à revolta e a uma certa incredulidade. E questiono-me sobre os motivos que podem levar alguém a sentir uma espécie de alívio social com o desligamento físico a que esta crise pandémica nos tem levado.

Estaremos a aceitar que esta humanidade é, afinal, um aglomerado, disperso e potencialmente desligado de peças de um jogo?

Poderão, com certeza, relembrar-me as imposições atuais. Claro. Não nego, de forma alguma, a perigosidade de um vírus SARS-COV2 para o qual ainda não temos tratamento ou vacina de prevenção. Não nego, claro está, que o conhecimento científico indica que a distância física é, para já, a única garantia de não contração da doença. Não sou, portanto, e ao que à Covid-19 diz respeito, negacionista.

Sou, contudo, cética quando de relações humanas – e de relações de humanos com outros seres vivos – baseadas no distanciamento social se trata.

Não, não é imposto distanciamento social, mas sim físico. Não, não é imposto que deixemos de sentir saudades de abraçar os familiares, as amigas ou até os colegas de trabalho. Não, não nos é imposto que sintamos como “novo normal” estarmos em casa a trabalhar quando o nosso trabalho não é suposto ser no nosso reduto mais privado e íntimo. Vou negar, portanto, e até à exaustão, que a humanidade seja um conjunto de peças de um jogo individualista, despreocupado ou imóvel diante de estímulos tão fortes como a falta de dignidade, a solidão atroz ou os afetos da condição humana.

O que nos poderá estimular num cenário de distanciamento social? Seremos nós a geração que vai terminar com os abraços, os beijinhos, as gargalhadas e os toques repetidos no ombro do outro enquanto falamos empolgadamente? Seremos nós as gerações do aceno tímido em resposta a uma pessoa comovida ou em sofrimento? Não sei, mas começamos a ter indícios fortes dessa possibilidade.

Mas volto aos motivos. Quais serão? Baseada na saudade que tenho das pessoas que amo, dos abraços coletivos e dos beijinhos a amigas/os, fui em busca da raiz dos desafetos que a pandemia estará a exacerbar.

1. Medo. É das emoções mais poderosas e a base de muitas das nossas decisões, atitudes e até escolhas políticas. O medo é poderoso, perigoso e alienante. São poucas as pessoas que não sentem – ou já sentiram – medo desde que a pandemia se instalou. Medo do contágio – nosso, mas principalmente daqueles que amamos –, medo de ir trabalhar, medo de hospitais, medo de dizer que estamos ou fomos contagiados, medo de discriminação. Medo. Medos.

2. Esforço. Lidar com seres humanos, todos com personalidades diferentes, expectativas distintas ou semelhantes não é um processo simples ou cessante. Não. É uma espécie de projeto diário que temos de alimentar e cultivar, e suportar quando se revela frustrante. É, portanto, mais simples, em algumas circunstâncias, estarmos longe. Não ter de lidar com tanto volume emocional, com egos insondáveis, com fragilidades avassaladoras ou com inquietantes desafios é mais fácil. Estando longe, sempre podemos estar off; estando perto, é quase obrigatório estar sempre on.

3. Digital. Ainda que o volume de trabalho digital nos esteja a tornar autênticos zombies, é aí que nos encontramos, onde vamos fazer uma mini catarse diária, onde pagamos as contas, onde damos aulas, onde estamos em família, onde vemos conteúdos que de tão maus até se tornam bons; é para aí que, alegremente, transportamos as nossas vidas, vivências e, em fim de linha, o isolamento social, além de físico.

E passamos a reagir com likes e outros emojis, a pensar com imagens e a escrever – cada vez pior – sobre todo e qualquer tema numa junção de palavras com mais ou menos sentido e, claramente, mais infantilizadas. Passamos horas no Instagram, no Facebook e no TikTok e perdemos a paciência para textos longos. Onde lemos que Trump, Bolsonaro e um qualquer Ventura são tanto o demónio da humanidade como o Zeus na terra. Onde lemos grandes comoções públicas por este ou aquele motivo mais ou menos válido, tanto quanto tsunamis de linchamentos na ágora pública digital. Onde, na maior parte das vezes, confirmamos que a cordialidade, o respeito pelo outro ou a vergonha – própria e alheia – desvanecem.

4. Conforto. É claro que é mais confortável estarmos em casa a ler e a escrever coisas, preferencialmente, com a parte de baixo do pijama vestida, num alegre estado de desleixo, no conforto de nossas casas, sem apanhar chuva, sem ter de procurar estacionamento, sem dizer “bom dia” a todas as pessoas, sem embaciar os óculos cada vez que falamos com máscara, sem inundar as mãos com álcool-gel de cinco em cinco minutos, e, mais complicado ainda, sem ter de ligar com pessoas de todos os feitios, com as mais variadas ambições, os mais requintados enredos da narrativa humana, que exigem resistência, sagacidade e perseverança a toda a hora.

Estando longe, isoladas/os, até isolamos as emoções, até podemos dizer em voz alta dois ou três palavrões quanto ouvidos sobre nós ou sobre os outros um conjunto de barbaridades, chamemos-lhe assim. Ou, quando somos personagens principais de um filme cheio de pontos negativos; estando longe, ao menos não temos de levar com as vaias ou a clemência de um público nem sempre simpático.

Enfim, este é o tempo de dizermos – e ouvirmos dizer – que não temos tempo, numa espécie de corrida para lugar algum, onde só meia dúzia de humanos lá cabe. Ou é a carreira, ou é uma espécie de vendeta. Não sei. Sei, sim, que estamos um tanto perdidas/os nesta coisa da humanidade, onde não é mais cool termos saudades de estar com pessoas, de as tocarmos, de as sentirmos, especialmente, em dias mais ou menos chatos.

Eu nego-me a viver num mundo sem afetos.